No interessante filme “A vida em preto e branco” (1998), do diretor Gary Ross, é pelo canal da TV que uma dupla de jovens regride da década de 1990 para a de 1950, incluindo-se na cotidianidade de uma pacata cidade e no recorte da moralidade da época. O diretor usa inteligentemente o preto-e-branco e a cor como referências do imaginário social existente. A filmagem está inicialmente em branco e preto e os elementos vão se colorindo na medida em que o erotismo vai se fazendo presente; mas o que quero ressaltar é que a bicromia serve fundamentalmente para mostrar os lugares dos homens e das mulheres estabelecidos e petrificados pela regulação social: as mulheres do lar que esperam o marido em casa com um sorriso na boca e o jantar pronto, enquanto os homens do espaço público retornam no fim do dia de trabalho, certos de que a cena se repetirá diariamente.

Não encontrar a mulher em casa um dia, porque foi para um “espaço colorido”, provoca um desequilíbrio na organização do lar que se estende para a cidade e que faz com que os homens se juntem no intuito de devolver a tranqüilidade à polis. Sendo que uma das regulações que se reafirmam é a de que as únicas cores permitidas são o preto e o branco, esta movimentação toda se faz para evitar uma fantasia que os aterroriza: “imaginem se chegar o dia em que as mulheres voltem à noite do trabalho e encontram os homens em casa cuidando dos filhos!”. Ou seja, imaginem se os lugares de gênero se deslocam…

O psicanalista Jean Laplanche valeu-se também das referências preto-e-branco/colorido para tratar dos conceitos de “diferença” e “diversidade”. A diferença implica uma polaridade e se coloca sempre entre dois termos, enquanto que a diversidade pode ser entre dois termos mas também entre muitos. Por exemplo a diversidade das cores, que é infinita pois sempre se pode inventar outra nova. Se há uma convenção que reduza a uma bicromia, como no filme mencionado, neste caso o que não é branco é preto. Mas se não for  assim, o que não é branco pode ser de qualquer outra cor.

Agora, uma cor é um atributo que adjudicamos a um sujeito como “qualidade” ou como “insígnia”, ou seja, qualidade como cor que o pinta – e neste caso não há contrários – ou como insígnia, por exemplo quando se trata de times esportivos, onde dizer “os verdes” ou “os azuis” é criar dois campos, que são campos de valor, opostos e contraditórios. Neste caso a cor não designa a imagem da coisa, mas “é a insígnia que cria aquilo que simboliza”, ou seja cria o campo político e social. Alguém é portador do verde, ou verde e o azul não são contrários, mas como insígnia passam a sê-lo. Passa-se assim da diversidade das cores à diferença dos campos: campos de contrários, de oposições e às vezes de ódio. Durante muito tempo a concepção binária da sexualidade, com atribuições de lugares cronificados, vem estabelecendo relações de valor e desvalor, com desigualdades e hierarquias.

As narrativas que permearam o imaginário da modernidade, construídas com base nos mitos do amor romântico, da mulher só mãe e da passividade erótica, criaram subjetividades de mulheres dóceis

A partir da revolução francesa e de seus lemas de igualdade, liberdade e fraternidade, as mulheres começaram a reivindicar seus direitos, mas se passou muito tempo para que transformações significativas acontecessem. Mostra disto é que no final do século XIX imperava a dupla moral vitoriana, consequência da organização patriarcal que dividia o lugar das mulheres entre “mães” e “vulgares”, esvaziando de erotismo o imaginário das primeiras e separando o espaço público como lugar de saber e poder para os homens, deixando o lugar privado do lar dos afetos e dos cuidados para as mulheres.

As narrativas que permearam o imaginário da modernidade, construídas com base nos mitos do amor romântico, da mulher só mãe e da passividade erótica, criaram subjetividades de mulheres dóceis, passivas ainda quando rainhas do lar, e de homens fortes, violentos, heróis e ativamente dominadores. Subjetividades que não foram reconhecidas como feitas a partir dos lugares instituídos e sim tomadas como essências universais e imutáveis: na modernidade, no seio da organização patriarcal, os lugares do feminino e do masculino foram pensados como categorias identitárias, enlaçando sexo, gênero, escolha de objeto e prática sexual.

Foi no final do século XIX que Freud tratou as histéricas de sua época e a partir desta clínica construiu os alicerces de sua teoria: os conceitos de pulsão, desejo, inconsciente, identificação, mas ao mesmo tempo com elas pode reconhecer o lugar do feminino no mal-estar cultural do momento. Freud localizou no sufocamento da sexualidade, consequência da moral repressora da época, um determinante importante do surgimento das neuroses. Moral repressora que criara indivíduos mais medrosos para a vida e mais angustiados com a morte, mas que atingia mais fortemente as mulheres, já que a sociedade exigia delas inocência e ignorância para mantê-las longe da “tentação”, já que a sexualidade só lhes era permitida dentro do casamento.

Nos dias de hoje, assistimos transformações importantes dos imaginários sociais, de suas práticas, narrativas, subjetividades e corporeidades, assim como das “lógicas coletivas sobre as sexualidades”. Muito escutamos falar hoje das lógicas das diversidades, mas não teríamos chegado até aqui sem passar por todo o processo de desnaturalização e dessencialização que os movimentos feministas e os grupos de estudos sobre o lugar das mulheres instituíram desde a década de 1960, com importantes reflexões, polêmicas e práxis que questionaram o supostamente “natural”. Estes grupos e movimentos agiram, na concepção do pensador grego-francês Cornelius Castoriadis no “instituído”, para abrirem brechas “instituintes” e narrativas inéditas. O pensamento de Castoriadis foi fonte importante para aqueles que, desde a segunda metade do século passado, vem trabalhando no sentido da desnaturalização das subjetividades e das sexualidades.

Castoriadis, que foi um dos maiores expoentes da filosofia francesa do século XX, nos ofereceu um conceito muito fértil para pensar tanto a criação da instituição social, como suas mudanças, descontinuidades e rupturas: o conceito de “imaginário social”. Na tentativa de limitar o avanço de pensamentos demasiadamente estruturalistas ou deterministas de sua época, pensou na realidade da sociedade como uma criação, não porque não existam determinações mas porque, como criações que são, em cada momento da história podem ser substituídas por outras novas.

Como o autor o afirma, não daria certo pensar a filosofia ou a psicanálise sem levar em conta a história, assim como não seria possível pensar uma existência psíquica que não seja construída no interior do processo de inserção na cultura

O imaginário do qual o autor trata não é entendido como especular, não é “imagem de”, e sim criação incessante, social e psíquica, de figuras, imagens, formas, é um “magma” de significações imaginárias que determinam as formas de sentir, pensar e desejar dos indivíduos. Isto faz com que a vinculação entre os indivíduos se dê nesse fluxo de formas que podem, por sua vez, ser transformadas pelas práticas individual e coletiva, criando um estilo de viver, amar, sofrer e morrer, e que por sua vez constroem subjetividades.

O imaginário se encarna nas instituições, que através de seus discursos tanto possibilita quanto restringe as ações dos sujeitos, tendo portanto efeitos práticos. As falas e fazeres provenientes das práxis individuais e coletivas constituem redes de significação, sendo exemplos de significações sociais o homem, a mulher, a criança… tais como especificados numa sociedade. As instituições são realidades fluidas que não podem ser entendidas pela lógica conjuntista-identitária e que estabelecem uma dinâmica permanente entre o instituído e instituinte, permitindo alterar o existente e fazer surgir o inédito.

Como o autor o afirma, não daria certo pensar a filosofia ou a psicanálise sem levar em conta a história, assim como não seria possível pensar uma existência psíquica que não seja construída no interior do processo de inserção na cultura, o que aproxima seu pensamento do fundador da psicanálise Sigmund Freud – que mais de uma vez afirmou que não se pode dissociar o individual do social e que o psiquismo se constrói na história singular, mas inserida num “mal-estar cultural” próprio do momento.

Será também na segunda metade do século XX que os movimentos feministas questionarão a opressão patriarcal sobre a sexualidade das mulheres, e que os avanços nas técnicas anticoncepcionais começarão a desvincular a sexualidade da procriação, com efeitos importantes nas subjetividades. As mulheres vão ocupando novos espaços e se encarregam de mostrar que os lugares fixos não eram da essência feminina e sim dos valores da época.

O imaginário feminino se alarga, o que traz consequências para os caminhos pulsionais e identificatórios na história de uma construção singular.

Na década de 1980, começam a ser questionados os efeitos do patriarcado na construção das masculinidades e surgem propostas sobre as “novas masculinidades”, que incluem os homens em práticas e lugares que antes não ocupavam e que incluem nos homens e suas subjetividades aspectos antes excluídos e que os enriquecem: a sensibilidade, a afetividade, a capacidade de cuidar, etc.

Desde a realidade dos corpos e das vidas surgem novas imagens e vivências que se incluem no fluxo do imaginário social

Os avanços científicos seguem em ritmo acelerado, a separação entre sexualidade e procriação, a partir dos anticoncepcionais, só se acentua com as técnicas de inseminação artificial e fecundação in vitro. Nas predições dos estudiosos, a possibilidade da procriação inteiramente fora do corpo da mulher acena no horizonte, apesar das pesadas críticas dos conselhos de ética. Os métodos de Reprodução Assistida, as cirurgias para adequação do corpo ao gênero e outros avanços ampliam o “corpo erógeno”, solicitando trabalho psíquico e acompanhamento dos efeitos inconscientes produzidos.

Desde a realidade dos corpos e das vidas surgem novas imagens e vivências que se incluem no fluxo do imaginário social. As novas realidades interrogam os vínculos de parentesco, as mudanças dos lugares de gênero mudam as organizações familiares; os corpos mudam e solicitam transformações do simbólico. Novos mitos imperam: o corpo perfeito, a juventude eterna, o amor efêmero.

Nos últimos anos passa-se a entender que não basta se questionar a desigualdade e a hierarquização entre homens e mulheres, é necessário pensar também nas desigualdades que se estabeleceram entre as sexualidades que seguem o modelo heteronormativo e as outras sexualidades que ficam patologizadas, desvalorizadas.

O pensamento binário sobre a sexualidade é posto em cheque; mais do que isto, é a chave identitária que está sendo questionada. É necessário pensar as sexualidades em chave identitária? Aquilo que é da ordem do estar com, a escolha do parceiro, ou de uma pratica sexual, tem que ser transformado em algo da ordem do ser? Há que se pensar em categorias ou podemos pensar em processos identificatórios complexos e permanentes que resultem em combinatórias singulares?

A realidade sempre nos interroga, mas talvez com maior força nos momentos nos quais no imaginário social o instituinte abrange um espaço muito grande; nos momentos de muita transformação ética, estética e política.

Em um mundo em que se constroem muitos muros, alguns de tijolos e outros de preconceitos, para evitar o contato com os diferentes, também estão se desconstruindo alguns; alguns corpos cobram visibilidade que não tinham, algumas subjetividades atravessam fronteiras antes intransponíveis, sujeitos contemporâneos incorporando algum nomadismo transitam por territórios diferentes e os pesquisadores tentam abrir as fronteiras entre saberes, não para perderem sua especificidade mas para que a complexidade não lhes escape. Entre avanços e retrocessos, aberturas e fechamentos, fragilizações da organização patriarcal e retornos violentos da mesma, vamos caminhando…

* Psicanalista, Silvia Alonso é supervisora do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e coordenadora do grupo de pesquisa “O feminino e o imaginário cultural contemporâneo”. Ela é uma das colunistas do páginaB!.

REFERÊNCIAS

Castoriadis, C. La institución imaginaria de la sociedad. Buenos Aires: Tusquets, 2007.
Fernandes, A. Las lógicas sexuales: amor, política y violências. Buenos Aires: Nueva Vision, 2012.
Laplanche, J. Problemáticas II: Castração – simbolizações. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
A vida em preto e branco. Direção e Produção: Gary Ross, 1998, DVD (124 min).


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