Cerca de 400 jagunços, mulheres e crianças feitos prisioneiros no final da guerra de Canudos, em outubro de 1917. Foto: Flávio de Barros / Álbum Canônico Virtual de Canudos / Acervo Instituto Moreira Salles / Museu da República

“Canudos não se rendeu.” A frase, de enorme impacto, está na penúltima página de Os Sertões. A essa altura, o leitor está com a respiração suspensa, ouvindo o rugido raivoso de cinco mil soldados. Da enorme comunidade surgida em torno de Antonio Conselheiro restam apenas quatro, dentre eles um velho e uma criança. Todos os demais foram massacrados, não sem antes oferecer uma resistência nunca vista na História, que humilhou o exército republicano.

Euclides da Cunha presenciou apenas os últimos dias da guerra de Canudos, na condição de jornalista enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo, comissionado como adido do marechal Macedo Bittencourt. Mas foi o suficiente para que se comovesse a ponto de rever todas as suas convicções. O resultado dessa experiência, uma série de reportagens que só seriam reunidas em livro muitos anos após sua morte, serviria de base para que escrevesse Os Sertões, uma obra-prima sem igual na literatura mundial, comparável apenas a livros do porte de Guerra e Paz e Ilíada. Obra à qual o autor chamou de “um ataque”. Seu objetivo era explícito: denunciar o fratricídio perpetrado pelos militares e responsabilizar os governos federal e baiano, e a Igreja (como bem nota Roberto Ventura).

A nova edição, primeiro lançamento da nascente Ubu editora, ao lado da Edições Sesc, faz jus ao trabalho visionário de Euclides da Cunha (1866-1909). Primeiro porque reproduz, num volume à parte, o exaustivo trabalho feito pela crítica e professora Walnice Nogueira Galvão de coligir as cerca de dez mil variantes existentes entre a primeira edição, de 1902, e a terceira, de 1905, determinadas pelo próprio autor, um obcecado por mínimas questões de estilo; segundo porque acresce 12 artigos de grandes críticos literários, também selecionados e editados por Walnice, juntamente com reproduções da caderneta de campo do autor e as célebres fotos de Flávio de Barros, mostrando as marcas da destruição e o estado miserável dos combatentes.

Dentre os artigos, chama atenção os três primeiros textos, pois feitos no calor da hora, assim que Os Sertões foi lançado. O grande crítico da época, José Veríssimo, por exemplo, resume bem a obra (tão difícil de definir), ao dizer que “é ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista, que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da natureza, como ao contato do homem, e estremece todo, tocado até o fundo d’alma, comovido até às lágrimas, em face da dor humana.”

Em ensaio de 1943, Gilberto Freyre também exalta, com seu característico estilo frondoso, o talento incomum de Euclides, destacando a forma como desvelou, para os sulistas ricos, uma realidade escondida no Brasil profundo: “O artista os interpretou [os sertões] em palavras cheias de força para ferir os ouvidos e sacolejar a alma dos bacharéis pálidos do litoral com o som de uma voz moça e às vezes dura, clamando a favor do deserto incompreendido, dos sertões abandonados, dos sertanejos esquecidos.”

Antonio Candido, por sua vez, escreve em 1952, com precisão e poesia, que há no livro “uma visão por assim dizer trágica dos movimentos sociais e da relação da personalidade com o meio – físico e espiritual. Trágica, no sentido clássico, de visão agônica em que o destino humano aparece dirigido de cima. O homem euclidiano é o homem guiado pelas forças telúricas, engolfado na vertigem das correntes coletivas, garroteado pelas determinações biopsíquicas: – e, no entanto, elevando-se para pelejar e compor a vida na confluência dessas fatalidades”.

Um dos textos mais completos é o de Franklin de Oliveira, publicado em 1982, em que aborda o conflito interno de Euclides e defende sua honestidade intelectual: “Antes de visitar Canudos, ele via a tragédia sertaneja de um ângulo reacionário. Considerava-a reação monárquica pura e simples. Fazia coro com os que preconizavam o seu esmagamento. Depois de testemunhar a luta dos sertanejos, de conhecer-lhes as condições de vida, de sabê-los proscritos da civilização, réprobos sociais, mudou radicalmente de posição. E escreveu o livro vingador.” Afirma que o escritor fundou a mímesis brasileira e ressalta, com fervor, a força de seu estilo: “Não é um verbalismo frouxo, ralo, reles, de quem não tem o que dizer e inflaciona a frase. É pletora verbal de quem tem muito a dizer e, por força da pressão expressiva, necessitava violar os padrões clássicos, subverter normas, inovar, renovar, revolucionar. Ou fazer o contrário: ressuscitar arcaísmos, em busca do insólito.”

E de fato, ao contrário da ideia corrente de que é melhor ler o livro a partir da terceira parte, A Luta, naturalmente a mais empolgante, as duas primeiras, A Terra e O Homem, trazem momentos de grande imaginação verbal. Do ponto de vista puramente literário, é possível dizer mesmo, em coro com Walnice Nogueira Galvão e o escritor Marcelino Freire, que o começo de Os Sertões é seu ponto alto. Ao descrever um cavalo atingido na refrega, o autor sai-se com um parágrafo que impressiona pela beleza evocativa e que, além de fundir os diversos elementos da natureza num mesmo quadro vivo, mostra a força da arte diante da finitude: “Fora a montada de um valente, o alferes Wanderley, e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar, porém, estrebuchando malferido, pela rampa íngreme, quedou, adiante, à meia encosta, entalado entre fraguedos. Ficou quase em pé, com as patas dianteiras firmes num ressalto da pedra…E ali estacou feito um animal fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas crinas ondulantes…”


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