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GUERRA CULTURAL RELIGIÃO
































            do pajé, ele sendo humilhado, sendo destituído do seu   espiritual, era guerra biológica. E aí começam aderir e
            lugar de poder e força, sendo tratado como um demônio.  fazer acordo e fazer guerras do lado dos portugueses.
            E de como as rezas, os cantos, as flautas mágicas, que   Foi isso que eu vi entre os Paiter Suruí (grupo indígena
            até ontem eram a cura, eram a transcendência do povo   que habita os estados de Rondônia e Mato Grosso). Um
            Paiter Suruí, iam virando algo do Diabo, e isso na boca   espectador alemão, na sessão do Festival de Berlim em
            de um pastor que chegou ali com toda essa narrativa,  que o filme Ex-Pajé ganhou lá o Prêmio Especial do Júri
            com remédios, aquilo que derrubou o pajé Perpera. O   (em 2018), numa sessão para 800 pessoas, perguntou
            contato dos Paiter Suruí se deu apenas nos anos 1960,  pra Cabena, a minha personagem: “Por que, se foi
            e o contato trouxe doenças. Eram mais ou menos 800  curada pelo pajé, você voltou pra igreja evangélica?”.
            Paiter Suruí quando foi feito o contato em 1969. Até 1972,  E ela respondeu: “Porque eu tenho medo de ir para o
            morreram mais de 400 de gripe, sarampo, catapora, a   inferno”. O que os evangelizadores jesuítas e capuchi-
            mesma coisa do século 16. E aí chega o evangelizador,  nhos diziam aos povos originários é que eles estavam
            esse que tá no filme, no final dos anos 1970, trazendo as   morrendo das covids porque eles não aceitavam Jesus,
            curas com remédio, antibiótico, aspirina, dizendo que   então, eles tinham que vir para o lado de Jesus e quando
            o pajé é um demônio. Esse pastor alemão (que não é o   eles vinham para o lado de Jesus era: “Destrua o seu
            cachorro, é o pastor mesmo), que ele veio da Alemanha,  pajé! Porque ele é o demônio”.
            ele pegou um grupo de indígenas evangelizados e foi   Na hora em que a Cadena foi picada por uma cobra,
            de casa em casa queimando as redes, dizendo “quem   enquanto está à beira da morte no hospital, e os médi-
            é cristão dorme em cama, em leitos horizontais”, e   cos não estão dando conta, os evangelizados chamam
            queimou as redes. Eles tinham até então um lugar de   o pajé Perpera, ele vai lá, reza e salva ela. E ela conta
            reza Paiter Suruí, que era um um pauzinho com uma   que já estava indo pra área dos mortos, já estava vendo
            pena que era bem não era benzido, mas mantinham em   o sogro dela morto, os parentes dela mortos, já estava
            casa como um centro espiritual; também foi queimado.  chegando à aldeia dos mortos. Ela contou que ouviu
            Então esse processo que eu relato no Ex-Pajé uma certa   então o canto do Perpera quando ela estava agonizando
            sutileza, ele é a ponta de um iceberg de uma violência   no hospital e o canto do Perpétua fez com que o sogro
            extrema que está na origem de todo o processo colonial   dela que a estava recebendo na aldeia dos Mortos
            e do sucesso da conquista violenta europeia. Porque   virasse para ela e falasse: “Não Cadena, você volte
            nas guerras locais, os indígenas, nos primeiros 30 anos,  para lá porque você tem muitos netos meus que ainda
            ganharam todas as batalhas; eles passaram a perder  precisam de você, então você não vai vir para o Dia
            quando a Covid se instalou e eles ficaram extremamente   dos Mortos. Volte”. E o caminho de volta foi seguindo
            fragilizados, e aí começaram a migrar pra religiosidade   o canto do Perpera. Então, na hora do vamos ver, os
            do invasor entendendo que aquele invasor tinha uma   pajés resolvem. São os pajés que vão salvar o Brasil do
            força espiritual que eles não conheciam – e não era força   apocalipse que está vindo aí. O futuro é ancestral ou

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