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no seu interior. É a primeira vez que um meio de negar a pandemia. No Brasil, a Carla Zambelli teve
comunicação realiza isso. Nós precisamos começar a coragem de difundir uma “fake news” de que os
a pensar nas consequências antropológicas desse caixões eram enterrados com pedras e não com
fato. Uma consequência antropológica fundamental corpos. E os bolsonaristas disputavam narrativas
é que a arte e a literatura tornam-se absolutamente sobre a origem do vírus, sobre o número de mortos,
excepcionais, algo à parte, porque tanto a leitura sobre estatísticas, como se fosse apenas mais um
literária quanto a contemplação estética dependem meme. Acontece que houve um momento no mun-
de uma outra fruição do tempo. do inteiro em que os mortos da covid deixaram de
ser números. Eles passaram a ser rostos: o meu
– Ou seja, também o desejo utópico de primo, um parente próximo, um amigo de infância.
universalizar a arte é derrotado? Os mortos deixaram de ser disputáveis enquanto
Completamente. Por exemplo, nessas duas imagens objeto narrativo, porque passaram a nos afetar a
que você mostrou é uma espécie de retrocesso todos. Quando isso acontece, a guerra cultural ela
inacreditável a uma concepção ou beletrista de lite- perde muito na sua vigência, porque não é possível
ratura ou academicista de arte. É curioso pensar até transformar a vida em simples disputa narrativa,
que ponto a extrema direita tem uma compreensão especialmente quando morre o seu pai, o seu irmão...
muito aguda dessa transformação e a utiliza. Porque, Há limite para o caos cognitivo.
em boa medida, a guerra cultural da extrema direita
é um braço avançado do neoliberalismo selvagem – De certa forma, estamos vendo a mesma
que vivemos hoje, neoliberalismo que enfrenta pela coisa e na Palestina, não?
primeira vez de maneira concreta a necessidade É isso! Há um limite para a disputa narrativa e o limite
de reconhecer que os recursos naturais não são é aquilo que nos tornou humanos: a consciência da
ilimitados, como se acreditava. finitude. Porque a extrema direita é tão perversa, mas
tão inteligentemente perversa, que viceja porque
– Vamos falar novamente de Brasil. Além se apropria de duas características diferenciais da
desse tempero novo das redes sociais, temos condição humana. Veja, se nós falamos de humano,
outra especificidade que é esse eterno regresso nós necessariamente falamos em narrativa. Não
à questão da ditadura militar e a força do neopen- existe um grupo humano contactado por antropólo-
tecostalismo. Você chega a ver um certo enfra- gos que não tenha uma forma especial de descrever
quecimento da guerra cultural? um mundo, de descrever a si mesmo, a origem das
Isso é um pouco a hipótese básica do meu último coisas. É a narrativa como a essência mesmo do
livro. Desde a campanha, até o início de 2020, o humano. Em segundo lugar, a finitude. Quer dizer,
governo Bolsonaro é o governo da guerra cultural. a consciência que nós temos de que somos, sim,
Isto é, uma máquina de produzir narrativas que, seres para a morte. A extrema direita lança mão
com base em “fake news” e teorias conspiratórias, das duas coisas de maneira muito perversa. Na
inventa constantemente inimigos que devem ser pandemia, a finitude falhou. A guerra cultural deixou
eliminados. E isso mantém a militância permanente- de ser a disputa de narrativa e se transformou em
mente mobilizada. A guerra cultural é uma poderosa forma de vida. Não basta disputar narrativas sobre
máquina eleitoral, porque é uma poderosa máquina o número de mortos, é preciso tomar kit cloroquina.
narrativa de radicalizações: o bem e o mal, o justo e Não basta a narrativa sobre caixões enterrados
o ímpio etc. Me parece que, com a pandemia, algo com pedras, é preciso usar máscara de maneira
de fundamental se quebrou. Porque, no princípio, deliberadamente equivocada, na testa, no queixo
a reação – tanto nos Estados Unidos quanto no e nunca nas vias respiratórias. A guerra cultural foi
Brasil, Trump e Bolsonaro – era de ou minimizar ou perdendo lugar para a vida.
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