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GUERRA CULTURAL HISTÓRIA
O erro é o equívoco objetivo, a ilusão é um equívoco,
mas é sobretudo a projeção de um desejo
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SIGMUND FREUD
que o campo progressista ainda não compreendia objetiva. O “kit gay” que nunca houve passou a
a engrenagem das redes sociais, a extrema direita existir e foi importante na campanha de 2018. Todo
produziu o caos cognitivo, inicialmente a partir do meu trabalho consiste em tentar entender como é
negacionismo climático. E depois do revisionismo que, discursivamente, do ponto de vista retórico, a
histórico. Na presença do caos cognitivo só há uma extrema direita consegue, em primeiro lugar, trans-
resposta possível: é o puro afeto. Então a guerra formar o erro em ilusão. Isto é, capturar o desejo. Em
cultural permite, paradoxalmente, despolitizar a segundo lugar, como consegue transformar a ilusão
pólis pela hiper politização do cotidiano. O resul- em ilusão coletiva. E como isso pode ser feito? Por
tado concreto que ninguém mais discute projetos meio das redes sociais.
de pólis. Daí a importância da pauta de costumes,
muito favorável para a criação de pânico social. As – É quase um diagnóstico psiquiátrico, não?
pessoas presas à pauta de costumes não tratam da Podemos recorrer a vários autores que pensam os
redistribuição de renda, da desigualdade, da utopia efeitos dessa modernidade para ajudar a refletir
de um mundo mais justo. Não! Na pauta de costumes sobre esse caos cognitivo?
é assim: “amanhã, a sua filha na escola vai entrar no É, é uma questão psíquica muito difícil. Há muitos
banheiro e vai ter um homem”, “amanhã, o seu filho pensadores que atribuem à introdução de podero-
vai receber uma aula de ideologia de gênero etc. sos novos meios de comunicação transformações
de caráter antropológico a longo prazo. Raymond
– Isso relembra o discurso fake da Damares Williams – importante crítico cultural britânico e um
sobre as crianças vítimas de pedofilia de Marajó, dos criadores do Cultural Studies – tem um livro
por exemplo. pouquíssimo conhecido no Brasil, On Television. No
Já que você falou da Damares, veja esse exemplo de início desse livro, ele fala algo muito impressionan-
dissonância cognitiva coletiva. Em 2013, a Damares te. Segundo ele, as pessoas pensam que um novo
Alves – não tenho nenhuma dificuldade de reconhe- meio de comunicação é apenas uma outra forma de
cer que Damares é muito carismática e adorada armazenar e transmitir dados. Ele diz que não, que
em certas comunidades evangélicas –viajou o país eles podem alterar profundamente a percepção
inteiro como assessora da Frente Parlamentar Evan- da realidade. E que, portanto, têm consequências
gélica para denunciar a existência do “kit gay”, que antropológicas imprevisíveis. Veja, você tem toda
nunca existiu. Em 2018, Bolsonaro lança mão dessa uma geração entre os dez e vinte anos, que passa de
denuncia e é como se ele passasse a existir. Em dez a 12 horas por dia com o celular nas mãos, você
outras palavras, quando uma dissonância cognitiva entra no metrô e as pessoas não se olham; você vai
é tornada coletiva e milhões de pessoas a abraçam, no restaurante e há casais que não conversam. Pela
ela se torna real. É como diz Freud ao discutir o erro primeira vez na história da humanidade há um meio
e a ilusão: o erro é o equívoco objetivo, a ilusão é de comunicação que pode estar 24 horas por dia,
um equívoco, mas é sobretudo a projeção de um sete dias por semana sendo usado. O livro não era
desejo. Se eu projeto meu desejo e esse desejo é assim, a televisão não era assim, o cinema nunca
também projetado por 58 milhões de pessoas, ele foi. Agentes sociais, no universo digital, têm uma
deixa de ser equívoco e se torna realidade política capacidade extraordinária de nos manter reféns
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