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O tempo todo. É uma guerra pela cultura. E isso de banco. Ela propunha também uma transforma-
tem consequências tremendas. Porque, se é uma ção radical nas relações interpessoais, a maneira
guerra, nós não estamos lidando com o outro, o como mulher se relacionava com o marido, etc. E
diferente, o diverso. Estamos lidando com o inimi- a contracultura foi identificada na guerra cultural
go. Numa guerra, só há uma forma de lidar com o sobretudo à escola de Frankfurt. E isso tem uma
inimigo. Eliminá-lo. razão concreta: na Segunda Guerra foram para os
– E como nós, vistos como inimigo, pode- Estados Unidos os mais importantes pensadores da
mos combater esse ataque? Qual é o seu método? Escola de Frankfurt: Adorno, Horkheimer, Lowen-
Em primeiro lugar, temos que ter consciência de que thal, Herbert Marcuse. Se os primeiros voltaram
essa guerra está em curso. Isso é importante porque, para a Alemanha, Marcuse ficou na California, na
por vezes, tudo parece tão delirante, tão afastado da Universidade de San Diego. Você sabe quem ele
realidade, que nossa tendência é não prestar aten- teve como aluna? Angela Davis! Marcuse escreveu
ção nos discursos articulados. Aqui, eu creio, entra obras que foram absolutamente icônicas e funda-
a minha colaboração. Tenho agora discutido muito mentais para o movimento de 68. De novo, o que eu
a Teologia do Domínio. Não sou teólogo, há muitas tento fazer é estabelecer esses elos que são quase
pessoas no Brasil que conhece o assunto duzentas narrativos, quase uma forma literária de abordar
vezes mais do que eu. A contribuição que eu tento dar a questão. Steve Bannon tem um documentário,
é analisar cuidadosamente o discurso e a tradução do Generation Zero, que discute a bolha financeira,
projeto por trás daquele discurso. Trabalho os textos a crise imobiliária. Você sabe de quem é, para ele,
minuciosamente, lendo duas, três, cinco vezes, passo a culpa da crise de 2008?
às vezes anos pensando, procurando elos que não É da Escola de Frankfurt! Por que essa obses-
são visíveis no primeiro momento. são? Porque Marcuse, no final dos anos 60 era o
inspirador da contracultura, o guru da juventude
– Seria quase uma análise literária do norte-americana, da juventude em Paris. A guerra
fenômeno? cultural parte do princípio de que o que está em jogo,
O que eu tento fazer é analisar cuidadosamente de fato, é uma batalha pela definição da civilização.
os discursos e, como eu tenho uma formação de E há aqui um abraço completo: o que se defende é
historiador, procuro sempre contextualizá-los no a civilização greco-romana-judaico-cristã, entenda
longo prazo, numa longa duração. A guerra cultural, isso como quiser.
num primeiro momento, é uma reação à contracul-
tura nos Estados Unidos e também na Europa. Na – Branca, masculina, que não questiona
França, por exemplo, é uma reação a maio de 68. a escravidão, o capitalismo, o colonialismo, ou
Nos Estados Unidos, ao movimento hippie, mas tam- seja, tudo que é preciso questionar não se pode.
bém aos Panteras Negras. A contracultura, como Isso. Como disse Machado de Assis, “é mais fácil
movimento, acabou sendo assimilada pelo próprio apreciar o chicote quando se tem se tem o cabo
capitalismo que contestava. Mas a contracultura na mão”. Quando ele é empunhado, não quando é
como atitude, afetava a base do sistema capitalista. recebido nas costas. Mas lembremos que guerra
Abria mão da propriedade privada
em todos os níveis, especialmente
nas relações pessoais; a contracul-
tura considerava como valor máxi- ’’
mo a experiência e não a posse, e É mais fácil apreciar o chicote
não a riqueza. Riqueza significava quando se tem se tem o cabo na mão
uma experiência rica e não conta MACHADO DE ASSIS
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