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ENTREVISTA CÉLIA TUPINAMBÁ



                                                               Graças a Deus, existem ainda os guarás. E, agora, os
                    – O manto fala com você quando você está   guarás chegaram à Bahia, tem uma cidade chamada
            perto dele?                                        Salinas que tem um mangue que tem guarás. Mas o
               Quando eu estou perto dele, ele fala comigo, e ele   manto que eu fiz, eu fiz com as penas da arara que
               me disse que era feminino. Eu já tinha essa com-  estavam ali à minha disposição. Os pássaros deixam
               provação, por ter visto manto sendo utilizado por   as penas para mim, não precisa matar, eles trocam
               seis a sete mulheres, e cada textura do manto era   de penas a cada ano. Eu uso as que tenho à mão:
               diferente. Em 2023, eu estive no Palácio de Versalhes,   sabiá bico de osso, gavião, canário da mata, inhambu,
               na França, e no Salão Real vimos essa ilustração lá   tururim. Agora mesmo recebi centenas de penas de
               de uma obra que representava os continentes. No   Guará de um artista de um quilombo. Depois que a
               continente sul-americano havia uma mulher vestindo   gente aprende o nó, a malha, o fio condutor, tudo é
               o Manto Tupinambá. As pessoas que estavam com   possível. Não é uma réplica. Trata-se de entender
               a gente me disseram: “Ah, Célia, mas esse manto   essa complexidade, porque isso faz entender o fio.
               tem um traço grego”. E eu respondi: “Isso muda o   É preciso internalizar, ouvir. Em geral, a gente pensa
               fato de que é uma mulher?”. No imaginário do Hans   no outro sempre ensinando, né? As pessoas já não
               Staden (1525-1576), o manto só é utilizado pelos pajés,   sonham mais, acham que tudo é material, tudo
               e nós sabemos que era utilizado também pelos caci-  é factual, tudo é marxista, né (risos). Então, esse
               ques. É o pajé e a sociedade Tupinambá em torno   manto que eu vou apresentar agora, feminino, eu
               dele e do manto. Mas quando encontramos essas   apresentei em 2021 na Casa do Povo. É esse aí que
               imagens, fechamos esse círculo de seis mulheres   está fazendo o trabalho de abre-alas para o manto
               usando o manto. A última foi no mapa que eu vi da   que vai vir da Dinamarca no ano que vem.
               França Atlântica, que tem uma ilustração com outra
               mulher usando o manto. Então eu me dei conta que     – A questão é: se já é possível fazer novos
               o manto era feminino.                        mantos, já há o conhecimento, qual o sentido de
                                                            trazer o manto da Dinamarca? É porque é sagrado?
                    – Quantos Mantos Tupinambás existem        O manto e os Encantados me mandaram escre-
            hoje no mundo?                                     ver uma carta em 2022. Eu encaminhei a carta em
               São 11 mantos. Estão em Bruxelas, Copenhague    setembro de 2022 para a Dinamarca. Depois que
               e Basel. Há também muitos objetos Tupinambá     fiz a escuta, o manto me disse que eu pedisse essa
               nos gabinetes de curiosidades, Na França, há um   doação para o Museu Nacional. Aí eles me pergun-
               machado, uma borduna, uma rede. Aquela semana   taram: qual manto teria que vir? O embaixador me
               em Versalhes foi bem intensa, a gente viu muitas   perguntou e eu disse: “O manto principal, o que está
               coisas na França, e a memória Tupinambá muito forte.   em exposição. Ele me disse que já estava preparado
               Foi então que eu tive essa comprovação de como o   para voltar”. As pessoas riram, acharam que não ia
               povo Tupinambá era recebido. A gente, na narrativa   acontecer. Eu acho que muita gente trata o manto
               histórica, nunca teve um lugar político de igualdade,   como um objeto, e ele é um ancestral. O retorno do
               mas as várias representações dos indígenas que eu   manto, em primeiro lugar, serve para poder diminuir
               pude ver, e uma delas é um afresco exclusivo, coisas   esse oceano de distância. Ele tem quase 400 anos,
               que a gente nunca tinha visto, demonstram que   é um manto idoso (risos). E tem uma estrutura, mas
               havia uma aliança e respeito. A história contada no   essa força de vontade que ele demonstra de regressar
               Brasil a respeito dos Tupinambás tem outro recorte,   para o seu povo tem que ser respeitada, é um ances-
               invisibilizando a nossa presença. Para as pessoas   tral regressado é assim que eu defino. Um ancestral
               entenderem porque esses mantos europeus se      há muito tempo silenciado. Nós chamamos isso de
               encontram na posse de reis na Europa, é preciso   objeto agenciado. Ele carrega a espiritualidade, é um
               saber que é isso aconteceu porque era uma aliança   artefato agenciado pelos rituais Tupinambá. Nem
               de rei para rei. As pessoas falam um monte de coisa,   todo mundo entende o que é um objeto agenciado;
               mas é preciso entender esse fio contínuo.        as pessoas de formação cristã, católica, evangélica,
                                                               elas têm uma visão de sagrado que eu considero     FOTO: PÉROLA DUTRA
                   – Originalmente, o manto era feito de penas   mais volátil, que reduz a quantidade daquilo que
            de guarás. Mas isso não é mais possível hoje, é?   significa para gente. Um ancestral é um ser vivo. E

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