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dos diferentes tipos de matrimônios, Mas também contemporânea. A antropologia contemporânea,
vemos o alto nível de conflito das reivindicações para mim, não é o estudo da cultura ou da cultura
indígenas que não são atendidas, assim como as separada. Tem de ser isso, mas deve também enten-
dos movimentos afro-americanos. Os movimentos der os problemas da interculturalidade.
indígenas são, historicamente, mais combativos na
América Latina, mas na realidade temos 50 milhões – Esta entrevista será publicada no contexto
de povos originários no continente, ao passo que são de nosso I Seminário Latino-americano: Relatos,
150 milhões de afro-americanos, menos organizados. Memória e Reparação, que abordará, entre outros
Às vezes algumas manifestações chamam atenção assuntos, a construção de narrativas contra-hege-
a essa emergência por parte das instituições culturais. mônicas nos últimos anos. As instituições culturais
Eu destacaria a Bienal do Mercosul, realizada em da América Latina estão abertas a essas narrativas?
Porto Alegre em formato virtual durante a pandemia, Essas narrativas, que vêm de grupos minoritários,
quando a curadora foi a Andrea Giunta. Ela elegeu têm alguma chance de aprimorar nossas demo-
as agendas dos grupos indígenas, das mulheres, cracias ou a resistência a elas é muito forte?
de representantes de gêneros diversos e a criação Canclini – Se consideramos um período como as
artística com signos de gênero e de afro-america- duas primeiras décadas do século XXI, vemos todas
nos. E essa Bienal foi um salto de reconhecimento. as composições socioeconômicas e políticas, o
Neste momento, a BIENALSUR, que tem sua base aumento da pobreza, etc. por um lado; por outro, há
na Universidad Tres de Febrero, em Buenos Aires, efeitos positivos, conquistas dessas emergências
mas inclui representantes artísticos de dezenas explosivas de identidades e de atores sociais novos.
de países, da África até a Ásia, está tendo dando Não gosto de usar a palavra identidade porque pare-
respostas a esse tipo de demanda que surge, dan- ce abstrata. São atores sociais que têm formas: de
do por exemplo, uma importância muito grande povos originários, dos distintos feminismos, dos
aos movimentos ambientais. Então, existe essas afro-americanos etc. E conquistaram muitas coisas:
erupções de respostas, mas é muito mais forte a as cotas universitárias no Brasil e em outros países,
intensidade e o volume das demandas. benefícios e direitos para as mulheres e também a
possibilidade de as pessoas terem outras opções de
– Outro tema emergente atualmente, o da gênero. E isso está institucionalizado, foi convertido
restituição e das reparações, também não apa- em leis. Não há como diminuir a importância de se ter
rece entre os assuntos abordados no livro. Mas muitas mais mulheres nos parlamentos e em algumas
gostaria de saber se já é possível entender seu presidências, de se ter a presença de presidentes de
impacto nas instituições ou se ainda está tudo povos originários, como no caso da Bolívia. Sabemos
muito embrionário. que isso não é uma evolução ascendente e inces-
Canclini – Há uma longa história da relação entre sante. A corte dos Estados Unidos acaba de anular
instituições públicas estatais e povos originários. as cotas para afro-americanos nas universidades.
Há um boom recente, e há soluções, entre aspas, E há algo que eu gostaria de destacar para finalizar.
no caso de México e outros países da região Andina Às vezes, as conquistas não consistem exatamente
da América Latina, que criaram soluções, mas que em conseguir aquilo que se propôs, que se pedia
não foram soluções, foram maneiras de arranjar uma às instituições, nem na aprovação de novas leis. As
convivência de forma muito precária. Hoje, há uma conquistas consistem em manter vivas as demandas,
emergência mais enérgica com reivindicações às em não esquecer que há povos originários, que há
quais não se pode responder com repressão. Não afro-americanos, que não deve haver discriminações
se trata apenas de atender a essa emergência, mas de gênero. Os museus estão mudando, de forma
também de encontrar novas formas de convivência lenta, mas reconhecem essa diversidade. Em 2018,
social entre as muitas diversidades étnicas, de gênero o coletivo Nosotras Proponemos fez uma exposição,
etc., porque parte do que estamos vivendo global- no Museu Nacional das Belas Artes na Argentina,
mente nessa etapa do século XXI é uma explosão em que iluminou somente as obras realizadas por
que torna muito difícil a convivência entre as culturas. mulheres na coleção da instituição. E aí vimos o
Para mim, enquanto antropólogo, a intercultural idade papel minoritário que as mulheres têm nas coleções
é o grande tema e o grande desafio da antropologia dos museus em todo o mundo.
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