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COLUNA CONVERSA DE BAR(R)













            ver, nela não reside a única importância dessa amizade
            que este ano completa cem anos de seu início. Embo-
            ra até hoje tenha sido pouco estudado, sabe-se que
            Ismael Nery promovia várias reuniões em sua casa, onde
            desenvolvia seus talentos retóricos, dissertando sobre
            filosofia, religião, estética etc., tendo como ouvintes um
            grupo formado por amigos que, mais tarde, se transfor-
            mariam em referências para a arte e para a cultura do
            país: o próprio Murilo Mendes, mas igualmente Jorge
            Burlamaqui, Mário Pedrosa, Antonio Bento, Alberto da
            Veiga Guignard e Jorge de Lima, entre outros.
               Foi durante essas reuniões que Ismael Nery teve
            a oportunidade de explicitar seus postulados filosó-
            ficos que, na sequência, eram registrados por seus
           “discípulos” Mendes e Burlamaqui. É dentro desses
            postulados que se percebe uma original e, ao mesmo
            tempo, bizarra conexão entre a estética surrealista e
            o catolicismo, proposição que já teve seus primeiros
            aprofundamentos no livro de Thiago Gil Virava, Uma
            brecha para o surrealismo2.
               Ao unir à sua prática pictórica, marcada pelo surrea-
            lismo, as especulações essencialistas/católicas, Nery
            desenvolverá uma poética em que o conceito de beleza
            surrealista - “o encontro fortuito de um guarda-chuva e
            uma máquina de costura numa mesa de operação”, de
            Lautréamont - ganharia uma dimensão mística, fato que
            o singulariza dentro do quadro geral da arte brasileira.
               Um dado de interesse é que a articulação entre cer-
            tos postulados surrealistas atrelados ao essencialismo
           “católico” também será perceptível na produção poé-
            tica de Murilo Mendes. A essa poesia, marcada pelos
            ensinamentos do artista amigo, no entanto, Mendes
            irá atrelar um peculiar prosaísmo que, igualmente, irá
            singularizar sua produção poética no universo da lírica
            brasileira.
               Essa conexão entre as práticas de Nery e Mendes
            com os pressupostos do surrealismo “católico” ganhará
            desdobramentos após o falecimento do pintor. Se sua
           “presença” é visível na produção pictórica do então jovem
            Guignard (e estará ainda presente em suas foto-colagens
            nos anos 1940 e 1950)3, impossível não perceber como
            também está presente no trabalho que o poeta e pintor
            Jorge de Lima irá produzir ainda em meados dos anos
            1930. Refiro-me a uma série de fotomontagens que Lima

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