Page 72 - ARTE!Brasileiros #54
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COLUNA CONVERSA DE BAR(R)
ver, nela não reside a única importância dessa amizade
que este ano completa cem anos de seu início. Embo-
ra até hoje tenha sido pouco estudado, sabe-se que
Ismael Nery promovia várias reuniões em sua casa, onde
desenvolvia seus talentos retóricos, dissertando sobre
filosofia, religião, estética etc., tendo como ouvintes um
grupo formado por amigos que, mais tarde, se transfor-
mariam em referências para a arte e para a cultura do
país: o próprio Murilo Mendes, mas igualmente Jorge
Burlamaqui, Mário Pedrosa, Antonio Bento, Alberto da
Veiga Guignard e Jorge de Lima, entre outros.
Foi durante essas reuniões que Ismael Nery teve
a oportunidade de explicitar seus postulados filosó-
ficos que, na sequência, eram registrados por seus
“discípulos” Mendes e Burlamaqui. É dentro desses
postulados que se percebe uma original e, ao mesmo
tempo, bizarra conexão entre a estética surrealista e
o catolicismo, proposição que já teve seus primeiros
aprofundamentos no livro de Thiago Gil Virava, Uma
brecha para o surrealismo2.
Ao unir à sua prática pictórica, marcada pelo surrea-
lismo, as especulações essencialistas/católicas, Nery
desenvolverá uma poética em que o conceito de beleza
surrealista - “o encontro fortuito de um guarda-chuva e
uma máquina de costura numa mesa de operação”, de
Lautréamont - ganharia uma dimensão mística, fato que
o singulariza dentro do quadro geral da arte brasileira.
Um dado de interesse é que a articulação entre cer-
tos postulados surrealistas atrelados ao essencialismo
“católico” também será perceptível na produção poé-
tica de Murilo Mendes. A essa poesia, marcada pelos
ensinamentos do artista amigo, no entanto, Mendes
irá atrelar um peculiar prosaísmo que, igualmente, irá
singularizar sua produção poética no universo da lírica
brasileira.
Essa conexão entre as práticas de Nery e Mendes
com os pressupostos do surrealismo “católico” ganhará
desdobramentos após o falecimento do pintor. Se sua
“presença” é visível na produção pictórica do então jovem
Guignard (e estará ainda presente em suas foto-colagens
nos anos 1940 e 1950)3, impossível não perceber como
também está presente no trabalho que o poeta e pintor
Jorge de Lima irá produzir ainda em meados dos anos
1930. Refiro-me a uma série de fotomontagens que Lima
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