Page 70 - ARTE!Brasileiros #54
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COLUNA CONVERSA DE BAR(R)
UM CENTENÁRIO
PASSANDO EM
BRANCAS NUVENS
Um olhar para a amizade entre Ismael
Nery e Murilo Mendes, iniciada em 1921,
demonstra que há ainda muito a se estudar
e escrever sobre o desenvolvimento
particular do surrealismo no Brasil
por taDeu Chiarelli
enquanto estuDiosos e pesquisaDores se prepa- Além da importância de estudos mais específicos
ram para a série de eventos que, a partir deste ano, dão sobre essa coleção de obras de Ismael formada por
início às comemorações do centenário da Semana de Murilo (que bem exemplifica o desejo do jovem poe-
Arte Moderna, ocorrida em São Paulo em fevereiro de ta manter para si pelo menos parte do amigo), cabe
1922, vão passando em brancas nuvens as comemora- ressaltar as transformações pelas quais ele passaria
ções de um outro centenário, de um outro evento (se após a morte de Ismael, transformações essas que
assim podemos chamá-lo) também fundamental para se iniciaram ainda durante seu velório, quando Murilo
a arte e a cultura no país, ocorrido no Rio de Janeiro foi levado a um verdadeiro êxtase místico, tendo sido
em 1921: o encontro e o início da relação entre o artista possuído por Jesus Cristo através do espírito de Ismael
Ismael Nery e o poeta Murilo Mendes. Nery – episódio narrado por Pedro Nava em seu livro
Essa tão profunda amizade que uniu ambos até de memórias, O círio perfeito1.
1934, ano do falecimento de Ismael, interessa a todos Essa experiência, que levaria o então jovem anarquis-
no Brasil e sob diversos aspectos. Dentre eles, caberia ta Murilo Mendes para o catolicismo de Ismael, também
salientar a forte carga libidinal que envolveu os dois teria outra consequência: a partir de meados dos anos
amigos e que fez com que, por exemplo, Murilo Mendes 1930 (após a morte do amigo), Murilo se apaixona ou
se tornasse o primeiro grande colecionador de obras deixa aflorar plenamente sua paixão por Adalgisa, que
do amigo, aquele que - como bem lembrou Adalgisa o rejeita várias vezes.
Nery, esposa do pintor - resgatava do lixo a produção Esses poucos dados me parecem de interesse sufi-
que Ismael jogava fora, recuperava sua integridade ciente para um estudo biográfico de Mendes, a partir de
física e a catalogava. um ponto de vista psicanalítico. Afinal, se de início ele
Por outro lado, sabe-se que essa coleção, ainda com quer reter o amigo pela preservação das obras que este
o pintor vivo, tornou-se aos poucos uma das únicas e jogava fora, com sua morte o poeta (após o processo
mais importantes coleções de arte moderna da antiga de possessão no velório) parece ter se transformado no
Capital Federal, acervo que permitiu a vários intelectuais próprio amigo, assumindo sua religião, suas preferências
– entre eles o então jovem Mário de Andrade – entrarem estéticas (como será mencionado ainda aqui) e a viúva.
em contato com a obra de Ismael. Mas, apesar de todo interesse dessa história, a meu
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