Page 76 - ARTE!Brasileiros #53
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ARTISTA CENTENÁRIO LEÓN FERRARI
Acima, sem título (série Bíblia), xilogravura de Hishikawa Moronobu sobreposta à Última Ceia, de
Dürer. À dir., Divindade fálica oriental Go-Shintai com anjo com espada, retirado da Bíblia Shnorr
As indagações constantes sobre as Escrituras não ocasião, o então cardeal Jorge Mario Bergoglio, hoje Papa
se refletem apenas na arte, mas contaminam toda sua Francisco, entrou em confronto com ele chamando-o
forma de viver. Em uma carta à sua irmã Suzana escrita de “blasfemo”. Ferrari nunca negociou sua liberdade de
em 1984 ele comenta: tirar do inferno o “pecado” ou, expressão com nenhum poder estabelecido, seja da Igreja
melhor, converter o inferno em um jardim cheio de flo- ou do Estado. Ao contrário, deu continuidade e alargou
res, como o é em realidade, pode ser um bom caminho seu repertório de concepção catártica, ao desenvolver
para limpar ou começar a limpar nossas cabeças dos novos processos simbólicos contra os arbítrios.
versículos da Bíblia e seus congêneres. Ferrari incomodou e muito pela forma livre com que
Ferrari desobedece e rejeita todo projeto genocida sempre trabalhou, na contramão do circuito de arte, que
do poder. Na década de 1980, vi alguns rascunhos costuma se alinhar ao sistema. Em 1989, depois de ser
dessa série em seu ateliê paulistano e me chamou a convidado a participar da coletiva Art in Latin América,
atenção que os personagens bíblicos flutuavam no na galeria Hayward de Londres pela curadora Dawn
alto das lâminas/folhas. Deus, santos, anjos pareciam Ades, sua obra foi censurada e cortada da coletiva.
denunciar o céu religioso como um lugar de vigilância Em 2013, como uma resposta a todas as censuras que
da ordem, que se remete a Michel Foucault, em seu sofreu ao longo dos anos, ele faz um pronunciamento
livro Vigiar e Punir. definitivo: “A liberdade de consciência, o direito de crer
Em 2004 ele sofre uma nova investida da igreja e do em qualquer deus, ou em nenhum, implica também,
sistema quando sua exposição Infernos e idolatrias, no para alguns, o direito de cada um estudar, defender,
Centro Cultural Recoleta, em Buenos Aires, é invadida por criticar, fazer arte, humor, cinema, teatro, literatura,
fanáticos católicos que incendiaram algumas obras. Na com qualquer das crenças”.
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