Page 74 - ARTE!Brasileiros #53
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ARTISTA CENTENÁRIO LEÓN FERRARI
A BÍBLIA, O INFERNO
DE LEÓN FERRARI
Mais de cem colagens misturam imagens
da escritura sagrada com obras de
pintores consagrados, acontecimentos
contemporâneos e gravuras eróticas orientais
por leonor amarante
no ano em Que león Ferrari Completaria 100 anos, o pensamento de Max Ernst e cria uma obra de poética
escolho a série Bíblia, de 1989, como objeto de reflexão. iluminada pelo contrassenso. Ele não se constrange com
Com essas obras ele conclui sua ponte para o inferno, a moral comum dos preceitos seguidos pela maioria.
iniciada em 1965 com a obra seminal La Civilización Utilizar os textos da Bíblia é parte de seu pensamento
occidental y Cristiana, estopim do seu embate com a anárquico, com a intenção de libertar a iconografia presa
igreja católica. Mais de vinte anos depois Ferrari retomou em livros e lhes dar vida justapondo e superpondo-a
o tema religioso com mais de cem colagens realizadas em trabalhos próximos à fotomontagem. O oriente e o
com variantes híbridas, misturando textos e imagens ocidente coexistem no provérbio visual de Ferrari, um
da escritura sagrada com obras de Michelangelo, Dürer, inventário encadeado por uma narrativa de textos e
Goya, Da Vinci, Rafael, notícias de jornais e gravuras imagens que anunciam contrariedades. Ao confrontar
orientais, de elegância formal e erotismo à flor da pele. diferenças de sexualidade em outras culturas ele chega
Bíblia é o balizamento da arte total de Ferrari e com a um trabalho desafiador. Apropria-se do desenho do
ela desencadeia vários comentários verticais sobre a Duomo de Pisa e o contrapõe à gravura Ukiyo-e, de
Escritura Sagrada, que vão de Deus a moradores da 1910, e a Jeová, de Rafael Sanzio, século xvi, precedida
periferia fuzilados pelo esquadrão da morte na ditadura do comentário bíblico: “Se a filha de um sacerdote for
dos anos de 1970. apanhada em estupro e desonrar o nome do pai, será
Dezenas dessas colagens estão reunidas no livro entregue às chamas (Levítio21,9)”. A contra leitura que
Bíblia, considerado um dos marcos de pensamento se instala em torno das obras dessa série se compõe
transgressor, com apresentação do poeta Regis Bon- de camadas de interpretações.
vicino. As imagens xerocadas, opacas, trabalhadas Com o desaparecimento de seu filho pela ditadu-
em branco e preto lembram o processo gráfico dos ra militar, em 1976, Ferrari deixa a Argentina e se fixa
jornais sindicais ativistas. Max Ernst define colagem em São Paulo. Presença/ausência é o espectro que o FOTOS: CORTESIA FUNDACIÓN AUGUSTO Y LEÓN FERRARI
como “o encontro de duas realidades distantes em um acompanha no exílio e o atormenta até o fim de sua
plano estranho a ambas”. Usando apenas a imagem de vida. Ferrari opera no vazio que existe entre a arte e
um pênis, que representa a Divindade fálica oriental a vida, desarruma o sistema, escancara a lógica da
Go-Shintai, do século 17, e uma gravura de anjo com dominação com personagens coletivos que contestam,
espada, retirado da Bíblia Shnorr, de 1860, Ferrari reitera interrompem e colocam em xeque a história.
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