Page 26 - ARTE!Brasileiros #50
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ENSAIO TARSILA
soviéticos. É claro que ela tentou atenuar o autorita- jamais traiu sua radical busca da origem da própria
rismo da vertente que abraçara, arriscando levar para pintura. O que, infelizmente, não ocorreu com Tarsila.
ela certa “delicadeza” que já impregnara suas fases Finalizo estas considerações voltando à Coleção
anteriores. Mas não foi feliz na empreitada. Cá entre de desenhos de Tarsila que estão na Fundação Marcos
nós: nenhuma de suas pinturas produzidas durante sua Amaro e atentando para o quanto é fundamental que
fase “realista socialista” e aquelas produzidas depois, tenhamos abertas ao público coleções como essa. O
se comparam, em termos de qualidade de concepção/ contato direto com os desenhos da artista e a possibili-
realização, às suas duas fases anteriores. dade de também ler os textos das curadoras, presentes
Acima mencionei o fato de que Tarsila, após sua fase no catálogo da exposição que acontece a partir de 14
“realista”, teria tentado “copiar a si mesma”, produzindo de março em Itu, conseguiram mobilizar e, de alguma
trabalhos que repetiam temas e soluções plásticas já maneira, configurar uma série de questões que vinha
desenvolvidas nos anos 1920. Esse procedimento nos acalentando sobre a produção da artista, mas que, até
remete a Giorgio de Chirico (caro a Tarsila) que durante então, não tinha tido chance de elaborá-la e dar-lhe uma
o período final de sua vida, levou adiante uma série de primeira e ainda tímida sistematização. Saio dessa expe-
pinturas em que “pintava a si mesmo”. Antes de fale- riência com outra compreensão do papel desempenhado
cer, De Chirico, aparentemente como Tarsila, também por Tarsila do Amaral no cenário da arte brasileira da
produziu uma série de obras em que “refazia” pinturas primeira metade do século passado e isso somente foi
metafísicas muito próximas daquelas por ele concebi- possível pela generosidade da Fundação Marcos Amaro,
das no início de carreira. No entanto, ao contrário dela, que tornou pública essa série de trabalhos, depois deles
De Chirico encetou, durante sua longa trajetória, uma terem ficado trancafiados durante cinquenta anos, em
volta particular às origens. Somente após transitar por uma coleção particular, e longe da vista de todos!
grande parte dos principais períodos da história da Espero que a Coleção não propicie apenas novos
arte ocidental (De Chirico foi renascentista, barroco, estudos sobre Tarsila, que aprofundem sua importân-
neoclássico, romântico etc.), foi que ele retornou à cia e singularidade, mas também que um novo público
pintura metafísica que ajudou a constituir no início do entre em contato com a produção dessa artista que, em
século passado. Apreciando ou não sua obra, o fato tão poucos anos, fez tanto para a visualidade do país.
[6]
é que essas produções dos últimos anos de vida de E termino perguntando: e para que existem coleções
De Chirico guardam uma coerência que, se não foi fiel como essa, a não ser para entreter, ensinar e, sobretudo,
à busca da originalidade (desejada pelos modernos), para colocar a cabeça das pessoas para funcionar?
[1] - A Coleção em breve será disponibilizada ao público na Ana Nakanderkara e “Conservação nas obras de Tarsila do Amaral.
mostra Tarsila. Estudos e Anotações, a ser inaugurada na Fábrica Coleção Kogan Amaro”, de Isis Baldini.
de Arte Marcos Amaro, em Itu, com curadoria de Aracy Amaral e [4] - Reparem que no Autorretrato, apesar de sua estruturação
Regina Teixeira de Barros. geométrica “moderna”, persistem valores muito afeitos à
[2] - Sobre a obra de Tarsila do Amaral, consultar: SartunI, Maria celebração da “mão” da artista, edulcorando a imagem –
Eugenia (Dir.) / BarroS, Regina Teixeira de (org.Ed.) Catálogo procedimento, aliás, que Tarsila tenderá a suprimir em seus
Raisonné Tarsila do Amaral, São Paulo: Base 7 Projetos Culturais: reconhecidos autorretratos daquela mesma década.
Pinacoteca di Estado, 2008. Vol.1, 2, e 3. [5] - Sobre as relações de Mario de Andrade com a arte moderna,
[3] - Ler: “Tarsila. Desenhos”, de Aracy Amaral e “Sobre os desenhos consultar, entre outros: CHIarellI, Tadeu. Pintura não é só beleza.
de Tarsila”, de Regina T. de Barros. In amaral, Aracy; BarroS. A crítica de arte de Mario de Andrade. Florianópolis: Letras
Regina T. de (curadoras.). Tarsila. Desenhos. Itu: Fundação Marcos Contemporâneas, 2007.
Amaro, 2020. Além dos textos citados e das imagens das obras, o [6] - Como bem lembrou o crítico italiano Renato Barilli em
catálogo conta também com importantes textos sobre conservação diversas ocasiões (Ver, entre outros, BarIllI, Renato. L’arte
e restauro das obras da Coleção: “Conservação e restauro I”, de contemporanea. Da Cézanne alle ultime tendenze. Seconda
Ana Maria C. Scablianti (e outros); “Conservação e restauro II”, de edizione. Milano: Feltrinelli Editore, 1985.
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