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PRÊMIOS PIPA
pré-Copa e Olimpíadas, o ápice de superficção carioca. Para além de tratar de cidades reais, surgem também muitas figuras
Muitas vezes, nos meus vídeos, eu parto de filmes turísticos, reais. Como é que escolhe esses personagens e como eles se inserem
propagandas, que é como a cidade quer se vender, qual nos trabalhos?
ficção ela vai criar para se exportar, essa criação da imagem. São ícones né? São como totens. Por exemplo, Silvio
Santos, a vida dele, a trajetória dele, é como um totem
Mas você parte do que a cidade quer mostrar para expor o que a de São Paulo. É a encarnação do mito da meritocracia.
cidade não quer mostrar... E trabalhando no photoshop vi que ele e João Doria tem
É, como são construções muito bem elaboradas e antigas traços muito parecidos. Então no trabalho eles se juntam,
procuro identificar as raízes simbólicas e históricas e as suas como se fossem um só. Se complementam. Porque Doria
diferentes manifestações, de como essas ficções acabam também é como uma caricatura, um arquétipo do herdeiro,
sendo incorporadas no imaginário coletivo da cidade, e do capitalismo selvagem. Você vê essas figuras e já sabe
como elas agem e são instrumentalizadas nas diferentes do que se trata, elas já trazem todo um universo junto. E
guerras pelo poder. No caso de Minas isso também é muito não são fenômenos abstratos. São pessoas que estão lá
forte. Minas é um pouco a “fofura encarnada”. Ninguém vai agindo, um exército. Claro que têm muitas outras, é muito
falar mal de MG, que tem aquela comida, um ideal de hos- mais complexo que isso.
pitalidade. Mas fora isso é um lugar de poder, de dinheiro,
é um dos poucos estados que não tem Dia da Consciência Você disse certa vez que seu trabalho procura lidar com a com-
Negra, apesar de seu passado, é tudo muito velado. plexidade do apocalipse. Também disse que o trabalho todo trata
de guerra, em diferentes planos. Enfim, estamos no apocalipse?
Nas superficções você trabalha com vários planos e camadas de poder Estamos em guerra?
que caracterizam as sociedades como política, religião, mídia, polícia, Existe essa percepção de que há um apocalipse, em todos
mercado. Como escolhe estes temas trabalhados? os níveis, na questão dos recursos naturais por exemplo.
É bem natural, chegando nos lugares e observando, sen- E o trabalho tenta ver esses detalhes, como isso é uma
tindo, conversando. Claro que todas estas camadas estão construção, é uma guerra que vem de muito longe. No
presentes em todos os lugares, mas em cada um elas trabalho de Brasília, por exemplo, fui vendo esses ciclos,
agem de uma forma diferente, com outras narrativas. Por como na inauguração de Brasília reencenaram a primeira
exemplo, a religião funciona de modos distintos em cada missa do Brasil, da época da conquista. É um apocalipse
lugar, até com construções físicas muito distintas e com que vem se preparando há muitos séculos, mas agora
estilos de pregação diferentes. Mas, no fundo, com a mesma é como se fosse o momento apoteótico, que veio para
vontade de conquista. No caso da mídia também. No Rio, valer. E trabalhar com isso, mexer nessas coisas às vezes
por exemplo, tem uma construção midiática muito forte é assustador. Foi ficando mais nítido no decorrer dos
através tanto das novelas quanto dos noticiários policiais, capítulos, tendo seu ápice em Brasília, onde a pesquisa
criando essa narrativa esquizofrênica, representada pela foi feita na época das eleições de 2018. Parece que os
rosa dos ventos no SuperRio. Em MG você vê sempre uma senhores escravocratas conseguiram a fórmula perfeita.
narrativa de uma “volta para a terra”, uma imagem mais A junção da força da fé com o marketing emocional e as
rural, uma ideia mais de pureza, e isso é exaltado na mídia. tecnologias da informação é arrebatadora.
E seu trabalho está sempre questionando essas narrativas oficiais, Ao mesmo tempo em que temos esse quadro apocalíptico, o meio
trazendo coisas ocultas. artístico tem dado reconhecimento para trabalhos que lidam com
Sim, a ficção da democracia racial, por exemplo, que em cada questões raciais, indígenas, de gênero etc. Você acaba de ganhar o
lugar é narrada de um jeito. E é uma das ficções centrais da Pipa, por exemplo. É uma resistência ao apocalipse?
construção do Brasil, que serve ao apaziguamento, à explo- Acho que talvez o mundo das artes tenha despertado mais
ração. Essa negação do passado escravagista. Falando de agora também porque as coisas começaram a atingir uma
Minas de novo, que é o que está mais fresco para mim, tem “branquitude” que estava tranquila, protegida, presa num
toda essa instrumentalização do mito de Chica da Silva. Em romantismo. Mas tem gente que já estava acostumada
todo lugar que você vai tem essa narrativa que diz “olha, tem com a perseguição, que tem sabedoria do que é estar em
a Chica da Silva, escrava rica, linda”. E aí parece que está guerra. E acho que as artes agora talvez se voltem mais
tudo certo. A coisa fica mais sútil, mas talvez por isso mesmo para estes, os que já sabem do que se trata. Quando há
mais perversa. Com essa camada de mel, de glacê doce. necessidade, tudo se aprende mais rápido.
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Book_ARTEBrasileiros_49.indb 88 14/11/19 00:59