Page 48 - ARTE!Brasileiros #47
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INSTITUIÇÕES CASA DO POVO
tecelagem até atendimentos psicanalíticos gratuitos; apoiar a luta dos países Aliados e, ao mesmo tempo,
de discussões sobre a integração de imigrantes no não deixar se perder uma cultura secular judaica. De
bairro até o ensaio de um coral tradicional cantado em outro, o desejo de homenagear os milhões de mor-
ídiche; de um encontro sobre alimentação consciente tos nos campos de concentração nazistas. “Poderia
até a própria distribuição de refeições. Pode-se, ainda, ser feito um memorial, uma escultura, com os nomes,
consultar uma biblioteca e um vasto arquivo documental, onde se colocariam flores uma vez por ano. Um gesto
adquirir um exemplar do jornal Nossa Voz, editado pela de lembrança e pronto”, comenta Seroussi. O que foi
Casa, ou partir dali com um audioguia para percorrer o feito, no entanto, foi um “monumento vivo”, um espaço
bairro do Bom Retiro e conhecer sua história. que reunia as associações antifascistas – como o jor-
Se as práticas são tantas e tão diversas – e a lista acima nal Nossa Voz e o Clube da Juventude – e ao mesmo
poderia continuar –, elas não acontecem por acaso, nem tempo homenageava os mortos. “As duas narrativas se
são incoerentes com a proposta de um espaço con- encontram: o centro cultural e o memorial. Então é um
temporâneo de cultura e arte, como explica o curador espaço de memória, mas um lugar onde lembrar é agir.
e gestor cultural Benjamin Seroussi, diretor da Casa e Um lugar onde a história não está escrita na parede,
um dos responsáveis pela retomada. “Por um lado, os mas está inscrita nos corpos e na arquitetura, e cabe
artistas pedem para ampliar a noção de arte, não querem a nós ativá-la.”
se limitar às práticas tradicionais. Eles não entendem a Com projeto de Ernest Mange – arquiteto que traba-
arte como separada de outras esferas de produção e de lhou com Rino Levi e Le Corbusier – a Casa ganhou
outras atividades da vida. Por outro lado, a cultura não
se limita às artes. Moradia é cultura, culinária é cultura,
esporte é cultura”, diz. “Então aqui tem criação, ativismo,
gente em situação de vulnerabilidade social. Mas a gente
nunca deixa de entender isso como um lugar de arte.
Mas um lugar de arte que está tentando experimentar,
em escala real, outros mundos possíveis.”
Experimentar outros mundos possíveis era, certamente,
o que desejavam, nos anos 1940, os judeus progressistas
que fundaram o espaço no Bom Retiro, pouco após a
Segunda Guerra e o Holocausto. E é somente através
de uma compreensão desta longa história da Casa,
fortemente entrelaçada aos acontecimentos políticos e
culturais do século 20, que pode-se entender a atuação
da instituição hoje. “Porque toda a retomada foi feita
a partir de uma releitura da história. Mas não com o
olhar do historiador, digamos, mas mais com as técnicas
do curador. A ideia não é necessariamente procurar a
veracidade factual – não que isso não seja importante –,
mas muito mais pensar em como usar, e talvez abusar,
desta história no presente”, explica Seroussi.
A HISTÓRIA ANTIGA
A história a que o curador se refere remete aos anos
1930 e 1940, quando milhares de imigrantes judeus
fugidos da pobreza e perseguição na Europa passaram a
habitar o Bom Retiro, no centro de São Paulo, e quando
duas narrativas se juntam. De um lado, o surgimento
de associações antifascistas – a exemplo do que acon- ACIMA, CRIANÇAS NO GINÁSIO ISRAELITA SCHOLEM ALEICHEM, QUE
tecia em diversos cantos do mundo –, criadas durante FUNCIONOU DE 1953 A 1981 NA CASA DO POVO. ABAIXO, INAUGURAÇÃO DO
a guerra com o intuito de combater o antissemitismo, TEATRO DE ARTE ISRAELITA BRASILEIRO (TAIB), EM 1960
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