Page 32 - ARTE!Brasileiros #45
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MEMÓRIA ARTIGO






            NÃO TERMINOU DE ACABAR





            POR PAULO MIYADA



             A EXPOSIÇÃO “Ai-5 50 Anos - Ainda não terminou
             de acabar” encerrou-se no dia 4 de Novembro, uma
             semana após o término das eleições presidenciais do
             Brasil. Desde que o cargo maior do poder executivo
             voltou a ser decidido pelo voto direto da população,              PAULO MIYADA, CURADOR E PESQUISADOR DE ARTE
                                                                               CONTEMPORÂNEA E ATUAL DIRETOR CRIATIVO DO
             nunca havia acontecido uma campanha eleitoral em                  INSTITUTO TOMIE OTHAKE
             que os debates públicos e as discussões privadas
             tenham discutido tanto o legado e a amplitude     de forma diferente?; 3. Além dos casos de violência
             da ditadura militar. Relativização, negação,      direta de Estado por meio de mortes, exílios,
             desinformação e má-fé mostraram suas presas       torturas, prisões arbitrárias e retirada de direitos
             em tentativas de reescrever a história como uma   políticos de seus cidadãos, a ditadura fichou e vigiou
             revolução heroica e nacionalista. Do outro lado, toda   mais de 300 mil cidadãos por meio de seus órgãos
             sorte de esforços por elucidação e justiça reparativa   de censura, além de operar políticas sistemáticas
             - entre os quais essa exposição certamente se     de censura da imprensa, da cultura e da arte. As
             encontra - provaram-se insuficientes e constataram   consequências desse último ponto extravasam
             que está em jogo mais do que a disputa com os     em muito o âmbito da ditadura que se tenta
             discursos obscurantistas atuais: segue em aberto a   relativizar, e foram elas que receberam especial
             tarefa de completar os ciclos de reparação histórica   atenção na mostra, que partiu do contexto das artes
             e refundação institucional que foram apenas       visuais para entender o custo do silenciamento da
             parcialmente cumpridos da longa, barganhada e     população e prestar homenagem aos que souberam
             incompleta “redemocratização” do Brasil.          expressar algo quando nada poderia ser dito.
             Como uma ação cultural e artística, a exposição   O que se vive agora é um rescaldo ardente do
             esteve no polo oposto às tentativas de relativizar   quão profundo foi o dano deixado pelos anos do
             os dados deixados pela ditadura militar no Brasil.   regime militar, agravado pelo caráter precário
             Quando se tenta minimizar o impacto do golpe e    das instituições democráticas que não foram
             sua política repressiva afirmando que os “excessos”   tão revistas e fortalecidas nas últimas 3 décadas
             do regime atingiram apenas os radicais de         quanto teria sido necessário. Nesse sentido, o AI-5
             esquerda, três perversas injustiças são cometidas:   ainda não acabou mesmo de terminar, e tudo leva
             1. Não é verdade que apenas terroristas radicais   a crer que seus efeitos serão ainda mais sentidos
             foram presos, torturados e mortos, o exemplo de   nos próximos anos. Parece que se perdeu o véu
             Wladimir Herzog é um dentre centenas de casos de   de moralidade que ainda exigia alguma discrição
             brutais violências contra quem apenas exercia sua   das reencenações mais perversas da autoritária
             cidadania; 2. Mesmo nos casos dos combatentes     violência de Estado. Os primeiros a entrarem na
             diretos ao regime que seguiram vias de luta armada   linha de fogo serão, justamente, aqueles para quem
             e guerrilha urbana, nunca deveria caber ao Estado   a ideia de redemocratização esteve sempre entre
             o papel da retaliação sem todo o aparato jurídico   a lenda e a hipérbole: os negros, os indígenas,
             que fundamenta o Estado de Direito – se o governo   os LGBTQ+ e os miseráveis. Por isso mesmo, a
             atua pela lei do olho-por-olho, dente-por-dente, qual   persistência da luta e da resistência terá neles sua
             a referência que sobra para que os cidadãos atuem   raiz, seu motivo e seu saber.








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