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MEMÓRIA ARTIGO
NÃO TERMINOU DE ACABAR
POR PAULO MIYADA
A EXPOSIÇÃO “Ai-5 50 Anos - Ainda não terminou
de acabar” encerrou-se no dia 4 de Novembro, uma
semana após o término das eleições presidenciais do
Brasil. Desde que o cargo maior do poder executivo
voltou a ser decidido pelo voto direto da população, PAULO MIYADA, CURADOR E PESQUISADOR DE ARTE
CONTEMPORÂNEA E ATUAL DIRETOR CRIATIVO DO
nunca havia acontecido uma campanha eleitoral em INSTITUTO TOMIE OTHAKE
que os debates públicos e as discussões privadas
tenham discutido tanto o legado e a amplitude de forma diferente?; 3. Além dos casos de violência
da ditadura militar. Relativização, negação, direta de Estado por meio de mortes, exílios,
desinformação e má-fé mostraram suas presas torturas, prisões arbitrárias e retirada de direitos
em tentativas de reescrever a história como uma políticos de seus cidadãos, a ditadura fichou e vigiou
revolução heroica e nacionalista. Do outro lado, toda mais de 300 mil cidadãos por meio de seus órgãos
sorte de esforços por elucidação e justiça reparativa de censura, além de operar políticas sistemáticas
- entre os quais essa exposição certamente se de censura da imprensa, da cultura e da arte. As
encontra - provaram-se insuficientes e constataram consequências desse último ponto extravasam
que está em jogo mais do que a disputa com os em muito o âmbito da ditadura que se tenta
discursos obscurantistas atuais: segue em aberto a relativizar, e foram elas que receberam especial
tarefa de completar os ciclos de reparação histórica atenção na mostra, que partiu do contexto das artes
e refundação institucional que foram apenas visuais para entender o custo do silenciamento da
parcialmente cumpridos da longa, barganhada e população e prestar homenagem aos que souberam
incompleta “redemocratização” do Brasil. expressar algo quando nada poderia ser dito.
Como uma ação cultural e artística, a exposição O que se vive agora é um rescaldo ardente do
esteve no polo oposto às tentativas de relativizar quão profundo foi o dano deixado pelos anos do
os dados deixados pela ditadura militar no Brasil. regime militar, agravado pelo caráter precário
Quando se tenta minimizar o impacto do golpe e das instituições democráticas que não foram
sua política repressiva afirmando que os “excessos” tão revistas e fortalecidas nas últimas 3 décadas
do regime atingiram apenas os radicais de quanto teria sido necessário. Nesse sentido, o AI-5
esquerda, três perversas injustiças são cometidas: ainda não acabou mesmo de terminar, e tudo leva
1. Não é verdade que apenas terroristas radicais a crer que seus efeitos serão ainda mais sentidos
foram presos, torturados e mortos, o exemplo de nos próximos anos. Parece que se perdeu o véu
Wladimir Herzog é um dentre centenas de casos de de moralidade que ainda exigia alguma discrição
brutais violências contra quem apenas exercia sua das reencenações mais perversas da autoritária
cidadania; 2. Mesmo nos casos dos combatentes violência de Estado. Os primeiros a entrarem na
diretos ao regime que seguiram vias de luta armada linha de fogo serão, justamente, aqueles para quem
e guerrilha urbana, nunca deveria caber ao Estado a ideia de redemocratização esteve sempre entre
o papel da retaliação sem todo o aparato jurídico a lenda e a hipérbole: os negros, os indígenas,
que fundamenta o Estado de Direito – se o governo os LGBTQ+ e os miseráveis. Por isso mesmo, a
atua pela lei do olho-por-olho, dente-por-dente, qual persistência da luta e da resistência terá neles sua
a referência que sobra para que os cidadãos atuem raiz, seu motivo e seu saber.
Book_ARTE45.indb 32 26/11/18 14:08