Page 29 - ARTE!Brasileiros #45
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de reflexão simbólica sobre a violência social intensa   veio na forma de uma série de performances, trabalhos
                     no país. “Osso” – tanto a mostra como o debate que   quase teatrais, desenvolvidos nos últimos meses. Essas
                     suscitou – unia duas pontas importantes: a expressão   apresentações, que entrelaçam discursos, narrativas
                     artística de questões sociais e políticas e a denúncia em   televisivas, debate político, tragédias (como “Antígona”)
                     relação a um caso específico de injustiça contra Rafael   e alegorias (como “Terra em Transe”) estão disponíveis
                     Braga, enquadrado injustamente na lei anti-terrorismo   no youtube (https://goo.gl/YFyrii). “Momentos muito
                     por carregar produtos de limpeza.                 agudos trazem reflexões mais imediatas”, diz o artista,
                     Tal esquecimento negociado não ocorreu em países como   enfatizando a importância de lidar com as coisas no
                     Argentina e Chile. Ao invés da anistia “conciliadora”,   calor da hora, expressa no título “Aosvivos”, que dá
                     os países vizinhos julgaram e encarceraram aqueles   nome a trilogia das peças.
                     que tomaram o poder pelas armas. E continuam nesse   Talvez o aspecto que mais assuste Nuno seja o insu-
                     movimento de expurgo, como comprova o atual processo   portável grau de violência de nossa sociedade, “essa
                     encaminhado no Chile contra os militares envolvidos   violência anônima, contra o anônimo”. “Matam 63
                     numa ampla rede de corrupção. Do ponto de vista da   mil pessoas por ano, com índices sempre crescentes,
                     arte, o paralelo é o mesmo. Enquanto o que se viu no   passando pelos vários governos, e a gente tolera”,
                     Brasil foi um silenciamento em relação à produção mais   lamenta. No entanto, ele pondera que não devemos
                     crítica dos anos 1960, o predomínio de uma postura de   deixar a arte levar a culpa, acreditar que por causa do
                     autocensura institucional e o menosprezo por essas ques-  acirramento das tensões ela deveria tomar para si o
                     tões no período posterior, nos países vizinhos houve um   papel de responder sempre aos acontecimentos. “Arte
                     esforço – tanto institucional como da sociedade civil – para   tem que ser boa, como for”.
                     instituir memoriais capazes de transmitir à população
                     os feitos trágicos do período militar. É bem verdade que   Resgate – Voltar atrás e rever esses movimentos esque-
                     temos em São Paulo o Memorial da Resistência, mas seu   cidos pelas instituições, pela crítica e pelo circuito
                     alcance e dimensão ficam muito aquém da gravidade   artístico é algo vital, se quisermos encontrar caminhos
                     dos fatos sobre os quais se debruçam.             que bloqueiem aqueles que defendem o fim do caminho
                     Os memoriais têm sentido para além do campo simbó-  democrático no País. Nesse sentido, a exposição AI-5
                     lico. São ações efetivas que impedem o apagamento   pinça na nossa história recente dois projetos de grande
                     da memória, mas são também testemunhos de como    importância – simbólica e conceitual – que merecem
                     a arte é vital para a elaboração desses traumas. O pro-  ser reavaliados nos dias de hoje, quando buscamos
                     jeto desenvolvido por Nuno Ramos para o Parque de   novas saídas. O primeiro deles é o plano elaborado por
                     la Memória, em Buenos Aires, e que ainda está por ser   Mario Pedrosa para o novo Museu de Arte Moderna do
                     construído, parece tocar com precisão no nervo dessa   Rio de Janeiro, depois que este foi destruído pelo fogo
                     questão da visibilidade/esquecimento. A proposta, uma   em 1978 (qualquer semelhança com o caso do Museu
                     das 18 vencedoras do concurso realizado em 2000   Nacional não é mera coincidência). Logo após o desastre,
                     envolvendo mais de 600 projetos de 44 países, é ao   Pedrosa sugere reestruturar o museu em torno de cinco
                     mesmo tempo singela e contundente: o artista propôs   eixos vitais para a compreensão da arte brasileira, com
                     recriar parte do “Olimpo”, temido centro de tortura   núcleos dedicados às artes negra, indígena, popular, do
                     da capital argentina, porém invertendo sua aparência   Inconsciente e contemporânea.
                     arquitetônica. Aquilo que é opaco, como as paredes,   O segundo é a tentativa liderada por Aracy Amaral de
                     seriam feitos em vidro, enquanto as aberturas, como   reorientar a Bienal de São Paulo, transformando-a numa
                     portas e janelas, passariam a ser de mármore negro,   espécie de polo latino-americano, capaz de estimular
                     explicitando assim o caráter oculto e terrível das per-  a troca, a produção e a exibição da arte regional como
                     seguições do regime.                              forma de fortalecimento político e cultural. Ambos não
                     Autor de algumas das obras mais contundentes sobre   saíram do papel, mas são – juntamente com o resto da
                     a situação social e política do país, como 111 – trabalho   produção de seus autores – fontes vitais de realimenta-
                     que se debruça sobre a chacina do Carandiru, em 1992   ção nesse processo de resgate de modelos capazes de
                     –, Nuno se diz assustado com a “loucura discursiva”   orientar o processo de resistência diante das tentativas
                     que vivemos no País. Sua resposta a essa violência   de esfacelamento da cultura nacional.


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