Aracy Amaral
O artista León Ferrari chegado a São Paulo com toda a energia de seus 56 anos era certamente um homem aplastado pela amargura de uma perda familiar irreparável e carregando o drama dos anos de chumbo na Argentina (circunstancia em que vivíamos aqui também).
Mas era um ser carregado de uma capacidade inusual de comunicação, que dizia não se sentir um “exilado” em São Paulo: sempre aberto a encontros, discussões sobre arte, contatos com outros. De imediato, nas casas em que viveu na rua Carlos Sampaio, Alameda Lorena e mesmo em seu ateliê da rua Amalia de Noronha, acolhia a todos que dele nos aproximávamos.
Atraiu em breve uma diversidade de amigos e artistas, muitos mais jovens e com os quais intercambiaria suas inquietações e investigações : Paulo Bruscky, Ana Carreta, Hudinilson Junior, Bené Fonteles, Arnaldo Antunes, o compositor Conrado Silva, eu mesma, Ana Beluzzo, Walter Zanini, Leonor Amarante, Jean Claude Bernardet, enfim, todos o conheciam e compartiam com ele o momento em que vivíamos.
De forma muito particular a dupla de artistas Regina Silveira e Julio Plaza, que o atraiam com suas experimentações inovadoras, passando León a se utilizar de formas mecânicas de reprodução gráfica com heliografias, letraset, e vídeo-textos.
Tive enorme satisfaçao de propiciar sua primeira exposição, entre nós, na Pinacoteca do Estado em 1978, quando diretora dessa entidade.
Ao mesmo tempo, Ferrari desenvolveu seus trabalhos em esculturas, filamentos finíssimos de aço que manipulava manualmente produzindo sons como no concerto realizado posteriormente na Pinacoteca do Estado, abrindo assim um novo rumo para suas experimentações sem fim.
Inquieto, influiu e foi influído por várias gerações de criadores com os quais conviveu em seus anos aqui, personalidade familiar no meio artístico, seja com seu convívio como com suas obras e o espírito aberto para nossa realidade, que é a de todo o continente.
Dizia ele que sabia que a arte não pode fazer uma revolução social. Mas reconhecia que todo grão de areia “tem sua importância, tem a possibilidade de falar de coisas que não têm palavras” (1982, entrev. a Adriana Malvido). Esse posicionamento permanente é sua contribuição perene.
Alex Flemming
Eu e o León nos conhecemos em 1977, quando fazíamos o curso de técnica de gravura em metal no ateliê de Romildo Paiva, na Vila Mariana. Logo depois, em 1978, eu fiz e expus minha série Natureza Morta, denunciando a tortura política no Brasil, e a partir daí nos tornamos grandes amigos. Toda semana eu almoçava uma vez em sua casa, na Rua Sampaio Vidal, e a Alicia começou a me dar aulas de espanhol. Foi aí sedimentada uma longa amizade, nos vários endereços paulistas do León que se seguiram: tenho ótimas lembranças principalmente do espaçoso ateliê em Pinheiros, na Rua Amalia de Noronha, onde havia grandes reuniões com muitos artistas.
No início da década de 1980 eu ganhei a Bolsa Fulbright e fui morar em Nova York. O León e a Alicia me visitaram em 1982 e ficaram morando em meu apartamento em Manhattan, na Rua East 30. Me lembro que era a época de nós experimentarmos várias maneiras da reprodutibilidade técnica de diferentes imagens, e íamos muitas vezes fazer xerox na Franklin Furnace. Depois que o León e a Alicia voltaram para a Argentina, eu os visitei em Buenos Aires e conheci também os diferentes endereços onde eles moraram, dentre eles a famosa casa da Rua Reconquista.
Doei para a Pinacoteca várias obras do León, que hoje em dia valem milhões. Por acaso estivemos juntos também em Veneza durante a Bienal, e tomamos café da manhã juntos no famoso Hotel des Bains no dia em que ele ganhou o Leão de Ouro.
Andrea Giunta
Uma pequena história para lembrar o León hoje, que nos deixou há sete anos. A obra Planeta, agora no acervo do MoMA, foi feita em São Paulo, durante o exílio de quase toda a família. Fez isso em 1979, quando já completava três anos que retomava o arame soldado que fazia até 1964. Um ano depois, e em rebelião aberta contra o sistema, em busca de outras formas de desafiar a ordem do mundo, León deixou de produzir obras visuais e passou a escrever obras. Palavras de Outros, de 1967, é tão épico quanto o célebre avião bombardeiro norte-americano com o Cristo. Mas voltando ao Planeta: León expõe esse trabalho na galeria Espaço Alternativo, Galpão de São Paulo. “Quando a obra chegou” – León me disse, em 24 de julho de 2004 – “era tão grande que não passava e tiveram que arrombar a porta para colocá-la na galeria”. O diâmetro do Planeta é 130 cm. Vi essa escultura deslumbrante na primeira vez que viajei para São Paulo, no MASP. Estava alto no corredor em frente ao elevador. Quando fiz a curadoria da retrospectiva [organizada por Giunta no Centro Cultural Recoleta, em 2004], trouxemos para a Argentina muitas das esculturas que León havia deixado em São Paulo quando voltou em 1991. Na retrospectiva ela reverberou na sala onde estavam os desenhos e esculturas de arame. A sala mais intensa, a sala maior.
Na foto, León é visto em um de seus concertos, provavelmente durante as 14 noites de atuação no Sesc, em 1981. O ano de 1979 foi também quando ele escreveu seu primeiro texto sobre artefatos para desenhar sons e quando ele empreendeu os planos com os quais faria seus projetos. Na retrospectiva, as salas de suas esculturas e desenhos eram muito mais representativas do que as duas pequenas salas que desencadearam a barbárie. Mas as notícias não param no sutil ou no abstrato. Nem a fúria que reproduz a violência que a imagem desafia. Sua falta é sentida.
Fábio Magalhães
Eis algumas palavras sobre o León: León Ferrari foi um amigo querido, teve presença marcante no ambiente artístico brasileiro e foi solidário e às lutas pela democracia no Brasil, sendo ele mesmo e sua família vítima da brutalidade da ditadura Argentina. Lembro do episódio em que o artista Alberto Cedron se viu ameaçado pela presença de militares em São Paulo e León Ferrari organizou um grupo de intelectuais e artistas para protegê-lo evitando que Cedron fosse sequestrado e levado à Argentina.
Leonor Amarante
Conheci León Ferrari uma semana depois que ele chegou da Argentina para morar em São Paulo. Meu amigo Miguel Briante, jornalista e escritor argentino, um dos fundadores do Página12, em um telefonema me disse: “Você tem que conhecer esse homem”. Nunca mais perdi de vista León e sua obra. Aqui ele deu continuidade a seu trabalho, que ganhou cidadania na história da arte brasileira. Ao longo de sessenta anos de produção artística viveu no contra fluxo do sistema, até que na década de 1970 foi empurrado aos infernos da ditadura argentina, que lhe tirou filho e nora.
Quis entender como Ferrari transfigurava outras temporalidades para criticar o presente, como na série Relecturas de la Bíblia iniciada em 1983. Minha última conversa com ele foi sobre este tema, em 2012, em seu ateliê em Buenos Aires. Explorar esse assunto requer imaginação analítica. Suas colagens misturam obras primas da arte com iconografia religiosa cristã, gravuras eróticas orientais e as confrontam com episódios contemporâneos como Guerra do Vietnã, ou Esquadrão da Morte na Baixada Fluminense. Léon Ferrari é um dos raros artistas com autoridade para enfrentar um sistema autoritário. Com sabedoria, deu exemplos motivadores para se sair de qualquer fascismo que tente destruir a democracia. Ele e sua obra pulsam nos corações libertários.
Regina Silveira
Conheci León Ferrari pouco tempo depois de sua chegada ao Brasil. Ele me procurou no ASTER (um centro de estudos que havia recém fundado junto com Walter Zanini, Donato Ferrari e Julio Plaza), porque estava interessado numa orientação em gravura que permitisse imprimir suas escritas sem inverter o texto, como era possibilitado pelos recursos de fotomecânica e matrizes fotográficas que eram de uso comum no ateliê de litografia que eu coordenava naquele centro. León em seguida fez aquelas gravuras e se tornou um frequentador assíduo do ASTER nos três anos em que este centro esteve funcionando. Logo ficamos muito amigos, visitava sua casa e conheci algumas de obras anteriores que tinha no estúdio. Um dia León trouxe ao ASTER um xerox que havia feito sobre papel de algodão importado, com qualidade gráfica surpreendente. Sua descoberta terminou por desencadear, na turma do ASTER e em artistas afins, uma verdadeira avalanche de experimentações. Em pouco tempo se organizou uma exposição, que Julio Plaza intitulou Gerox (mistura de “gravura” com “xerox”), organizada pela Poesia e Arte e mostrada na Pinacoteca do Estado, que, sob a direção de Fabio Magalhães era um lugar atento aos movimentos anti–tudo dos artistas neste período.
A curiosidade de León Ferrari pelas possibilidades abertas à expressão pelos meios gráficos disponíveis, mais precisamente os não tradicionais, era uma das nossas muitas afinidades e pontes de contato. Quase simultaneamente fizemos heliografias, uma técnica gráfica efêmera, pelo desbotamento progressivo que sofre com a luz, mas que permitia cópias de grande extensão, com qualidades especificas, a partir de uma matriz realizada sobre suporte transparente. León também foi um dos participantes de ARTEMICRO – uma exposição “portátil” e itinerante com obras microfilmadas, organizada por mim e pelo Rafael Franca em 1982. Ele também foi meu parceiro no pequeno display para ver microfichas, junto ao setor de Videotexto organizado por Julio Plaza para a 16ª Bienal de São Paulo em 1981, que teve Walter Zanini como curador.
Foi nesta ocasião que lhe dediquei o trabalho Eles e os Outros (Para León Ferrari). A dedicatória não está apenas no título, mas na remessa direta ao trabalho de León, tanto pela figuração escolhida como pela ordenação da visualidade – e até pelo humor. No trabalho utilizei aquelas pequenas figuras de executivos das folhas de Letraset que eram sua marca registrada, com a intenção de acentuar as diferenças entre o mundo do poder – o mundo dos “Eles”- e as figuras muito mais estranhas dos “Outros”, extraídas do mundo da arte.
Para mim León Ferrari era uma mistura de mágico e menino, sempre encantado com o universo particular das imagens e objetos que associava poeticamente, muitas vezes para montar discursos absurdos ou irreverentes. Fui uma admiradora sem restrições das narrativas anticlericais provocantes, que a partir dos anos 1980 ele montava com dose dupla de ironia e perversidade – mas sempre com uma enorme competência de linguagem. Uma vez Aracy Amaral me disse, até hoje não sei se a sério, que León era o único artista que ela conhecia que ainda tratava de temas religiosos, mesmo na posição de ataque e na contramão dos propósitos seculares da arte religiosa.
Agora que irremediavelmente León Ferrari não está mais por perto, só resta pensar que ele viveu uma vida rica, com reveses e muitas vitorias, e deixou atrás de si um poderoso conjunto de obras que não vai cessar de provocar a nossa imaginação.