Adriana Varejão, Proposta para uma Catequese - Parte I - Díptico Morte e Esquartejamento (1993) [Foto por Eduardo Ortega]

A exposição Adriana Varejão – por uma retórica canibal reacende as indagações sobre o barroco e a colonização brasileira sob o olhar aguçado da artista carioca. Exposta no Mamam – Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, no Recife, a mostra reúne 25 trabalhos produzidos entre 1992 e 2018 e faz emergir pontos obscuros da história brasileira.

O interesse suscitado por estas obras, já conhecidas do eixo Rio/São Paulo, ocorre agora da combinação acertada do recorte da curadora Luisa Duarte, com obras pontuais inseridas no Nordeste, território fortemente influenciado pelo barroco. Acima de tudo, local privilegiado para pensar a colonização que fez uso forçado da mão de obra escrava, na exploração massiva da cana de açúcar. Basta lembrar que a Capitania de Pernambuco, em 1534, era a mais rica e poderosa entre as 14 criadas pelos portugueses. Experimentar esse confronto é fazer voltar à superfície impressões submersas de um vasto passado ainda não digerido.                                                                

A exposição começa com o visitante sendo conduzido, naturalmente, à sala de projeção onde Transbarroco, videoinstalação de autoria e direção da artista e Adriano Pedrosa, é exibido em grande tela. Cenas escolhidas de quatro filmes, com projeções simultâneas, mostram fragmentos de igrejas do barroco brasileiro. A excitação visual das imagens funciona como organismo vivo, umas entrando nas outras, de tal maneira que o espectador não permanece em estado contemplativo. A trilha sonora mistura percussão do Oludum, acordes de órgão da Igreja de Mariana, toques de sinos, ritmos de samba. Quase como um sussurro, ouve-se a voz ao escritor angolano José Eduardo Agualusa falando trechos de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Transbarroco é uma interpretação livre que coloca o visitante em meio à fotografia, cinema e instalação, reforçando Mário Pedrosa: “a arte é um exercício experimental da liberdade”.

ele Tatuada à Moda de Azulejaria, 1995. FOTO: Jaime Acioli

A arquitetura do Mamam, como plano espacial, suspende o tempo em devaneio poético e abraça a exposição sem interferências. Algumas obras, nascidas em temporalidades distintas, dialogam com o contemporâneo como a pintura Incisões a la fontana, 2000, que deixa exposta a matéria interna, carne humana viva, inspirada na famosa tela do artista ítalo-argentino Lucio Fontana. No percurso de uma revisita ao colonialismo, vale refletir sobre Proposta para uma catequese – Parte 1 diptico: Morte por esquartejamento, de 1993. Só esse trabalho dá conta do conceito de contracatequese, defendido por Varejão. Em um detalhe da obra, um homem é empalado, método de tortura e execução que consiste na inserção de estaca no corpo da vítima, até a sua morte. A transgressão da cena reposiciona os sentidos e abre um novo lugar para sentir e pensar a violência no Brasil atual e sua herança colonial.

Há uma forte marca autoral nas obras de Varejão inspiradas em azulejos, ícone da cultura portuguesa, pela sistematização do movimento de repetição e multiplicidade de formas geométricas, presentes tanto em trabalhos mais antigos quanto nos mais recentes. A série Ruínas de charque, de 2000, simula pedaços de arquitetura com pinturas desses azulejos, entremeadas pela representação da carne de charque. Ao longo de sua pesquisa Adriana colecionou mais de seis mil deles registrados por ela desde 1988, com imagens que a inspiram.

Consumir poéticas diversas, digerir e devolvê-las em uma obra autoral, faz parte do registro do real e da fantasia que povoa a produção de Varejão e quase toda arte brasileira. O marco inaugural do antropofagismo nacional pode ser o episódio em que o padre Don Pero Sardinha é devorado pelos índios Caetés, em 1556, em um ritual canibal no litoral do Nordeste. Isso ocorreu 372 anos antes do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade ser lançado em 1928.

Azulejão (Neo-concreto), 2016. FOTO: Vicente de Mello

O interesse de Varejão pelo barroco vem do seu início nas artes, quando a conheci em 1988, na galeria Thomas Cohn no Rio de Janeiro. Ela fazia sua primeira individual aos 23 anos e dizia que as pinturas expostas eram resultado de uma viagem a Minas, onde se surpreendeu com o barroco das igrejas. Essa inspiração que persiste até hoje, a levou a estudar e pesquisar em Salvador e Cachoeirinha, (Bahia), Recife (Pernambuco), Mariana (Minas Gerais) e, posteriormente, em Portugal. Hal Forster, em seu texto O artista como etnógrafo, fala sobre o protagonismo que a antropologia como discurso exerce sobre a produção contemporânea, considerando como virada etnográfica o crescente interesse pelo Outro.

A mostra de Varejão foi inserida pelo Mamam no seu projeto Exposição Individual de Artistas Mulheres, sendo a terceira da série. A diretora Mabel Medeiros comenta que neste momento o museu está reestudando o acervo com atenção na produção feminina, ainda escassa na coleção. A exposição Adriana Varejão – por uma retórica canibal deve seguir até o final do ano para outros estados brasileiros fora do eixo Rio/São Paulo.

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