Artistas trans
ARTISTAS Assucena Assucena e Raquel Virgínia da banda As Bahias e a Cozinha Mineira

* Por Pedro Ambra

Um passo histórico na luta por direitos humanos foi dado no Brasil no último dia primeiro de março: o direito ao nome próprio para pessoas trans e travestis. Mas porque algo aparentemente simples é uma conquista tão fundamental?

Para que possamos responder essa pergunta, precisamos nos deter um pouco sobre o que é o nome. Um nome próprio é uma marca irredutível de uma singularidade que congrega o corpo e o conjunto de atos, sonhos e discursos de alguém. Trata-se de uma invenção humana que permite o reconhecimento da experiência de unidade de uma mesma pessoa por mais que ela — contraditoriamente — não seja mais a mesma ao longo do tempo: o nome é a marca da unidade na diferença.

Contudo, em muitas experiências trans, essa singularidade e seu reconhecimento são vetados, na medida em que o nome quase sempre carrega a marca irredutível do gênero. Assim, o processo de assunção de uma identidade transgênera passa necessariamente por uma transformação na relação de uma pessoa com o seu nome. Mais ainda, essa relação com o nome é, por vezes, muito mais central e importante do que qualquer procedimento cirúrgico, pois o que ela sublinha é que toda e qualquer vivência de gênero depende de um reconhecimento dos outros para se efetivar de fato. Em nossa sociedade, portanto, a cada chamada na escola, matrícula na universidade ou preenchimento do livro de ponto no trabalho, afirmamos ou deslegitimamos uma dada identidade. Privar alguém dessa coordenada básica de assunção de si como singularidade é o equivalente social, silenciosamente quotidiano, da violência física sofrida por centenas de pessoas no país em que mais se mata a população LGBTTQI no mundo.

A vitória no STF, obtida por meio da pressão de movimentos sociais, é importante ainda em outro aspecto: ela permite que o nome seja retificado sem a necessidade de cirurgia, de laudos psicológicos ou da contratação de advogados. Beatriz Bagagli lembra que a desmedicalização e desjudialização desse processo são significativas não apenas porque emancipam parte da população da incidência direta desses saberes e poderes médico-jurídicos, mas porque permitem que um grande número de pessoas trans sem condições financeiras possa usufruir do direito ao nome.

Assim, tal como as feministas queimaram sutiãs como ato simbólico de sua libertação, hoje travestis e transexuais, conforme sugeriu Hailey Kaas, podem queimar os laudos que, por tanto tempo, serviram como grilhões de sua vivência plena como sujeitos de direito. Tal gesto não deve ser visto como uma simples demanda identitária que crê cegamente na identidade do eu consigo próprio, tampouco como uma ameaça de fluidez radical que não reconhece normas e limites e alça a liberdade individual à condição de princípio fundamental. Trata-se, antes, da afirmação de que toda realização pessoal depende, inexoravelmente, das coordenadas de reconhecimento jurídico e social e, portanto, do laço com o outro.

Como dizia o psicanalista Jacques Lacan, o fato de haver apenas dois sexos no registro civil não impede que haja, sempre e para todos, uma escolha. Mas essa escolha, sublinha ele, sempre será uma espécie de autorização que passa não só por si mesmo, mas por outros: nos tornamos sujeitos precisamente nesse hiato entre nossa unidade singular e a constelação de outros que nos nomeiam. Celebremos, portanto, a descoberta de mais essa estrela em nosso vasto universo humano.

* Pedro Ambra é psicanalista. Doutor pela USP e pela Sorbonne Paris Cité, é autor de diversos livros e artigos sobre psicanálise, gênero e sexualidade. Colaborador da paginaB

 


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