'Que rumos daremos para as instituições políticas brasileiras de modo a mitigar o monopólio do poder econômico das grandes corporações e das famílias endinheiradas sobre o sistema político?' FOTO: EBC

O poder econômico e a corrupção política são faces de uma mesma moeda, a bem da verdade: o capitalismo acontece naquela antessala mal iluminada, em horários duvidosos, onde se encontram os donos do dinheiro e os donos do poder. A negociação de decisões do executivo, do legislativo ou do judiciário como barganha para interesses de grandes corporações, de conselhos administrativos e de empresários é a regra global e não a exceção brasileira.

Não haveria economia de mercado dos EUA à China, passando por Inglaterra, França, Alemanha, Rússia, Japão ou Coréia, sem que houvesse a imbricação entre interesses políticos e interesses empresariais, como, aliás, demonstram os grandes e recentes casos de corrupção na Siemens alemã, na Samsung coreana, na Alstom francesa, na BAE inglesa, na Weatherford suíça, para não mencionar os bancos norte-americanos e agências de classificação de risco que, com muitos desvios, propinas e ilícitos, provocaram a grande crise econômica de 2008, ou alguém imaginou que um país que elegeu Donald Trump como presidente seria um caso de capitalismo asséptico e de democracia auto-imune? Talvez nossos crédulos republicanos liberais nativos que tanto admiram os federalistas e os founding fathers norte-americanos tenham se deixado seduzir por esse engodo, mas ele pouco ajuda a compreender o caso brasileiro atual.

Noutras palavras, a mistura entre público e privado – ao contrário do que acredita parte do pensamento social e da opinião pública brasileira – não é uma peculiaridade nacional. Mas tal enunciação não deve servir para naturalizar ou para normalizar a corrupção no mundo e no Brasil, ela serve antes para colocar o debate em outro lugar, talvez, no seu devido lugar.

O escândalo provocado pelas delações de Marcelo Odebrecht e Joesley Batista não tratam apenas das relações entre a Odebrecht e a Petrobrás, ou entre a J&F e a CEF ou o BNDES, elas revelam problemas mais profundos e que são pouco observados tanto pelos operadores e entusiastas da Lava Jato quanto pela maior parte daqueles que fazem uma leitura crítica da Operação. Um ponto os une: a obsessão em resumir todo o problema brasileiro à famigerada questão do patrimonialismo. No Brasil esse conceito cria ares de família entre as mais variadas posições teóricas e colorações políticas[1]. Nada disso, vale explicitar em tempos de calores e polarizações políticas, ameniza ou absolve o escandaloso butim praticado pelo bando de Aécio, Temer et caterva. Mas a conjuntura desafia a reflexão, ao menos ela, a ir além da lama onde nos colocou essa quadrilha de saqueadores.

Entre nós o conceito de patrimonialismo virou uma espécie de “pau para toda obra” e a flexibilidade teórica chega a tal ponto que a ideia de patrimonialismo é tratada como mero sinônimo de patriarcalismo, de patronato, de privatismo, de clientelismo, de fisiologismo, de corporativismo, de mistura entre público e privado, e toda sorte de patologias que abatem nossa cultura política, em favor do conceito dão-se abraçaços conceituais para acolher e dilatar a ideia de que o Brasil é mesmo o país dos mal-feitos e do “jeitinho”, onde o capitalismo é mal-ajambrado e a democracia é um mal-entendido. A boa intenção em encontrar a tal singularidade brasileira esconde por trás de si a suposição de que em algum lugar do mundo exista um capitalismo puro e uma democracia ideal. Ledo engano.

Mas, se a corrupção não é exclusividade nacional, como entre nós ela tem criado tanto assombro? A nossa peculiaridade se encontra em outro lugar, não no problema, mas na falta de iniciativas concretas capazes de enfrentar o referido problema. O que se percebe em ao menos três aspectos fundamentais, que, infelizmente, tem sido negligenciados pelo debate público, quais sejam[2]:

  • A ausência de regulamentação do lobby; diante da falta de uma normatização clara sobre o que é permitido e o que é proibido no campo das relações público-privadas, as interpretações ficam a cargo das vontades e dos valores de procuradores, juízes e policiais de plantão, tudo agravado pela utilização indiscriminada das delações premiadas, dos acordos de leniência e dos vazamentos seletivos;
  • A possibilidade de que as doações de campanha sejam proporcionais às rendas e riquezas dos doadores. Esse tipo de jabuticaba só existe no Brasil, se não houver um teto universal para todos os doadores é evidente que os mais ricos sempre terão mais poder de decisão nessa democracia, ainda que como pessoas físicas, o que só reforça o surgimento de fenômenos como a ascensão de empresários na política;
  • A existência de uma cultura política fraca e de instituições políticas pouco sólidas, criando um clima muito favorável para a desqualificação e a criminalização da política em geral e para a construção de uma opinião pública muito suscetível ao moralismo e desejosa menos de justiça e mais de justiçamentos e linchamentos.

Em qualquer capitalismo mais organizado a mistura entre público e privado sofreu algum tipo de regulamentação mais contundente, no Brasil não, de forma que toda negociação passa a ser potencialmente tratada como relação espúria ou como crime, ao sabor do jogo de interesses do momento. Nesse ambiente, toda negociação, toda barganha, todo ajuste de interesses está passível de ser colocado numa sombra de avaliação moral, dando margens para perseguições políticas como a realizada pela Operação Lava Jato contra o PT e contra Lula.

É sintomático que as investigações tenham atingido outros partidos, como o PMDB e o PSDB, apenas quando a “delação preventiva” da J&F recorreu diretamente à PGR de Rodrigo Janot sem passar pela instância curitibana de Sérgio Moro. Ao realizar tal procedimento, evidentemente, para salvar a si próprio, à família e aos negócios privados, Joesley Batista revelou, ainda que indiretamente, os limites da Operação Lava Jato, parafraseando a expressão popular: o buraco é mais em cima. Os procuradores, juízes e policiais de Curitiba não tem um diagnóstico claro do problema que pretendem combater.

Passa ao largo da leitura desses jovens justiceiros elementos fundamentais para compreender e enfrentar a relação entre poder econômico e corrupção no Brasil: (i) historicamente, o arranjo institucional que permitiu o desenvolvimento da nossa economia se ancorou na articulação entre empresas estatais e empresas privadas; (ii) estruturalmente, o poder econômico monopoliza o sistema político em qualquer Estado-nacional relevante no sistema capitalista; (iii) dinamicamente, o poder econômico e o poder político são essencialmente interconectados, é possível melhorar a relação entre eles, mas não é possível isolá-los um do outro, ao menos não no capitalismo; (iv) tampouco se questionam que o comportamento político que está sendo investigado talvez seja a regra geral do sistema político e não a exceção partidária brasileira.

Entretanto, na concepção estreita e moralista dos operadores da Lava Jato, o problema da corrupção no Brasil é um mal recente, concentrado em pessoas más e antiéticas que precisam ser enfrentadas por pessoas boas e competentes. Tamanho reducionismo é risível, vexatório, e seria apenas uma piada de mau gosto se ele não tivesse se transformado no princípio que justifica a teoria do domínio do fato, a hipótese da flexibilização das provas, a priorização das convicções do MP sobre o direito de defesa de indiciados, e o expediente de se condenar acusados pela mídia antes do que pela própria justiça, tudo isso levado a cabo pela generalização da delação premiada, um instrumento propício para quem entende a corrupção como um problema pessoal ou moral e que vem substituindo a construção de outros mecanismos mais eficientes de combate à corrupção.

Com esse diagnóstico moralista e essa prática inquisitória a Operação Lava Jato cria um clima político instável, marcado ora pelo êxtase com a revelação da suposta verdade ora pela depressão com o desnudamento da realidade, enquanto isso ela coloca sob suspeita todas as instituições do país, o resultado em última instância tem sido o assombro e a desesperança da população com a política como um todo.

Em certa medida, os operadores da Lava Jato contam com a cumplicidade da opinião pública, que, se por um lado sempre desconfiou que as coisas funcionassem assim, posto que ela própria é dada aos pequenos delitos e ilícitos do cotidiano, por outro lado, ela ficou assustada e boquiaberta ao ver de forma nua e crua as entranhas “do sistema”. Aliás, enquanto a opinião pública não superar o choque do trauma e não der boas vindas ao deserto do real dificilmente nos recuperaremos de fato, e a avenida política seguirá aberta para outsiders de plantão e aventureiros de última hora.

A corrupção é um problema sistêmico que precisa ser enfrentado? Sim. Qualquer instrumento é válido para enfrentar a corrupção? Não. A Operação Lava Jato caminha na contramão da governança e da jurisprudência internacional e presta um desserviço ao Brasil jogando água no moinho daqueles que só repetem monotonamente feito uma cantilena: o Brasil é o país do patrimonialismo, onde o capitalismo não vingou. Não, o Brasil é um país capitalista como tantos outros, e se quisermos superar os reclamos e lamentos temos que enfrentar o choque de realidade que nos tem sido imposto pela conjuntura adversa e responder uma questão já enfrentada por outros países:

Que rumos daremos para as instituições políticas brasileiras de modo a mitigar o monopólio do poder econômico das grandes corporações e das famílias endinheiradas sobre o sistema político? Sobressaltos, moralismos e expedientes inquisitoriais não nos ajudarão nesse momento, isso a Operação Lava Jato já faz, assim como não nos ajudarão formulações genéricas sobre a democracia e platitudes etéreas sobre a falta do republicanismo brasileiro.

O tempo histórico exige mais do que pudemos oferecer até agora, exige medidas concretas de reconstrução e aperfeiçoamento das nossas instituições em outros patamares, sem regular e regulamentar a sanha do poder econômico e o assanhamento do poder político seguiremos aos tropeços, enfrentando golpes, rupturas constitucionais e quebras de pactos sociais.

*  William Nozaki é cientista político, economista e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo

[1] A crítica contra o uso generalizado e indiscriminado do conceito de patrimonialismo pode ser encontrada em: Souza, Jessé. A tolice da inteligência brasileira. São Paulo: Leya, 2015.

[2] Essa problematização pode ser encontrada de forma mais aprofundada em: Reis, Bruno. A Lava-Jato é o Plano Cruzado do combate à corrupção. Disponível em:< http://novosestudos.uol.com.br/a-lava-jato-e-o-plano-cruzado-do-combate-a-corrupcao/>.

 

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