Central de Flagrantes de Teresinha, PI

*Pedro Ambra

Debater o encarceramento em massa pode, à primeira vista, parecer uma discussão sociologicamente secundária. Afinal, nossas ideias sobre a prisão parecem orbitar quase sempre ao redor de questões individuais ou morais, haja vista o tipo de narrativa midiática criada ao redor das prisões da operação Lava-Jato. Mais ainda, a solução de problemas sociais — tais como a violência e a guerra às drogas — encontraria sua redenção em políticas de encarceramento mais efetivas e extensas.

Independentemente das discussões e ou investimentos pragmáticos para resolver a questão carcerária no Brasil, esta tem sido uma guerra perdida. Hoje a nossa população carcerária é considerada a terceira do mundo.

Nesse contexto, apontando a insustentabilidade de um discurso ideológico falido, Juliana Borges formada em Letras na Universidade de São paulo e pesquisadora, desenvolve uma análise dos propósitos da política carcerária no Brasil em seu recém-lançado O que é encarceramento em massa? (Editoras Letramento & Justificando, 2018).

Na obra, de caráter introdutório, a autora demonstra de que forma, com a terceira maior população carcerária do mundo, o país dá a ver sua racionalidade punitivista não propriamente em relação às infrações cometidas, mas como uma forma brutal de controle social e dos corpos. Assim, indaga “Como se estabelece crime e criminoso? Como e sob quais interesses se define o que deve ser tornado ilegal e criminalizado?” (p. 21) e não se apega a respostas dadas de antemão seja pela militância, seja pela academia.

Seu primeiro capítulo apresenta os componentes ideológicos que sustentam o encarceramento, e as bases do processo histórico de construção do sistema prisional. Se o conteúdo dessa breve análise é a explicitação da naturalização com a qual o senso comum encara a lógica carcerária, sua forma começa a apresentar componentes interessantes e centrais para o propósito metodológico do livro: nele mesclam-se dados estatísticos e históricos, análises de autores clássicos, como Foucault e Althusser bem como o de intelectuais negras de peso, como Carneiro e Akotirene. Desde o início da obra, a autora se propõe a fazer uma análise interseccional, ou seja, que articule as dimensões de gênero, raça e classe de maneira dialética, sem hierarquiza-las a priori. No entanto —  diferentemente de algumas discussões atuais que tomam a interseccionalidade como objeto — a autora propõe algo notável que é eleva-la à categoria de método. Em outras palavras, Borges realiza a interseccionalidade e o faz a partir de um objeto que a princípio lhe seria alheio, o encarceramento no Brasil. Não deve causar espanto, portanto, que o livro insira-se na coleção Feminismos Plurais, coordenada por Djamila Ribeiro: acompanharemos, ao longo de seus capítulos, a construção da especificidade de sua problemática fundamental, o encarceramento da mulher negra, e todas as consequências de tal postura analítica.

O segundo capítulo pontua algumas das particularidades da escravidão no Brasil, os componentes básicos do mito da democracia racial e, principalmente, as modalidades de perpetuação do racismo, posto que “algo tão fundamental no processo de formação não some em um piscar de olhos pela simples destituição da monarquia e por pretensões modernizantes.” (p. 53) Longe de se tratar de uma discussão que alguns nomeariam como “identitária”, somos convidados a enxergar a incidência dessa análise sobre os pilares de estruturação da sociedade brasileira, seus pontos nevrálgicos e a cartografia de silenciamentos que a acompanha. Pela análise do nascimento do sistema judicial no Brasil, constatamos como as bases da lógica carcerária são inseparáveis de um projeto racista e genocida, perpetuado no coração do direito criminal e da racionalidade que o rege, mesmo após o tardio e inconcluso processo de abolição da escravidão. De escravo a vadio criminoso, o lugar social do negro muda de nome, mas não em opressão. A autora sublinha que, por meio da imigração europeia, o projeto eugenista no país teve como uma de suas chaves a incidência do branqueamento na mão de obra com impactos distintos para homens e mulheres. Ao negar-se aí a possibilidade de ascensão social pelo trabalho “mulheres negras acabaram como lavadeiras, quituteiras e empregadas domésticas, ainda sob o contexto de superexploração. Aos homens negros sobrava, portanto, o enquadramento nessas leis criminalizadoras.” (p. 79)

Mas a articulação entre gênero, raça e classe ganha seu ponto alto no terceiro capítulo, no qual é introduzida a componente contemporânea da análise: a guerra às drogas. Se, de fato, a população carcerária masculina é numericamente muito superior à feminina, a política de incremento no encarceramento incide sobremaneira nas mulheres. “Entre 2000 e 2014, houve um aumento 567,4% no contingente de mulheres encarceradas, enquanto que o aumento entre os homens foi de 220%” (p. 90), população essa composta em sua grande maioria por mulheres negras. Borges nota que esse aumento coincide com o período da aprovação da Lei de Drogas, que teve impactos diretos no encarceramento e em suas especificidades de raça e gênero. “62% das mulheres encarceradas estão respondendo a crimes relacionados às drogas, enquanto que entre os homens esse percentual cai para 26%.” (p. 98) A autora salienta que os critérios para tal enquadramento — traficante ou usuário — dão-se em função da raça e da classe e, portanto, servem aos propósitos da manutenção estrutural do extermínio da população negra.

Tal quadro desolador não impede que Borges proponha, no capítulo que fecha a obra, um verdadeiro chamado à luta e à imaginação de um futuro sem prisões. Ao retomar e alinhar-se a toda uma tradição feminista negra interseccional, a autora sublinha que só a radicalidade do pensamento e da ação que toma a mulher negra como sujeito pode promover um verdadeiro abolicionismo que liberte a todas e todos. À maneira de Mbembe e Buck-Morss, Borges proporciona uma espécie de travessia da identidade, na qual compreendemos que enquanto nossa razão, nossas emoções e as estruturas que as produzem estiverem atrás das grades do racismo e do machismo, nenhuma universalidade será possível ou verdadeira.

*Pedro Ambra é psicanalista. Doutor pela USP e pela Sorbonne Paris Cité, é autor de diversos livros e artigos sobre psicanálise, gênero e sexualidade. Colaborador da paginaB.


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