'Alguém me disse que a democracia representativa estava morta em todos os lugares, que os parlamentos já não cumprem a sua missão e, completava com a demonstração cabal, “veja o nosso Congresso...”' FOTO: EBC

Quando estourou a última onda de revoltas no mundo árabe, me fizeram muitas vezes a pergunta que naquele momento apareceu, aos olhos de muitos no Ocidente, como uma das mais intrigantes: será possível a democracia no mundo árabe e no mundo muçulmano? A formulação mais direta e mais comum era: Islã e democracia são coisas compatíveis?

Eu respondia – com razão, acho – que sim; que não havia  por que imaginar que determinadas sociedades, humanas como todas as demais, não tivessem anseios por, entre outras coisas, liberdade e participação, e não tivessem condições de construir sistemas em que esses anseios fossem atendidos.

Apenas, pensava eu, a democracia que essas sociedades construiriam teria as marcas que lhe seriam próprias. Ela não poderia ser imposta ou importada sem que a palavra mesma perdesse significado.

Alguém me disse então que eu respondia assim porque não sabia o que era democracia. Esta verdade dita deste modo, sem misericórdia, abriu diante de mim o fosso da minha própria ignorância. Eu até podia ter razão sobre a impossibilidade lógica de uma democracia ao mesmo tempo democrática e imposta, ao mesmo tempo genuína e imitação desajeitada, mas o que, afinal, é a democracia?

Você que está lendo, saberia dizer?

A minha perplexidade com a coisa vem de longe. Desde a escola, talvez até mais desde as salas de cinema que eu frequentava com mais gosto, nos acostumamos a representar a democracia ateniense como o começo de todas as coisas boas e como superior à disciplina e ao autoritário de Esparta – a Esparta de abdômen definido só fará bonito, nos quadrinhos e nos filmes, contra os persas, aqueles vilões usuais de turbantes e rostos indefinidos.

Era preciso fazer um esforço para lembrar que aquela era um democracia exclusivamente de homens e de cidadãos, uma democracia de senhores e escravos.

Mais perto de nós no tempo, o modo como muitos europeus e outros ocidentais articulavam seu otimismo em relação à democracia turca causava em mim, a cada vez, uma surpresa confusa. O argumento era que naquele país o que garantia a continuidade democrática era a ameaça constante de um golpe militar: qualquer desvio antidemocrático seria corrigido pela ação violenta das forças armadas que viriam reconduzir a democracia a seu curso natural!!

O estranhamento causado pela imagem evocada, que mesmo para quem não entende nada de democracia pode parecer razoavelmente absurda, só fica um pouco mitigado quando se percebe que o que se quer dizer é que os militares seriam a garantia da laicidade, que eles constituiriam a defesa contra a islamização da política turca. Interessante a ideia subjacente de democracia, incompatível com o Islã mas não com um golpe de Estado.

E nos dias que correm a Turquia nos brinda com novas charadas democráticas. Em tempos de expurgo em massa de militares, juízes, promotores, professores e jornalistas, de uma evidente escalada autoritária e de uma crescente islamização da estrutura de poder, o presidente responsável por tudo isso conhece uma popularidade sem precedentes que o faz imbatível em qualquer processo eleitoral. Democracia e a voz do povo podem se desencontrar?

Mas o meu enigma favorito em relação à democracia é outro. Olho com admiração para os países que conhecem, em seus sistemas internos, os traços do que imagino seja a face da democracia à ocidental que se quer universal –  a esta altura, denunciada a minha ignorância, só me é licito imaginar…: eleições livres, alternância no poder, laicidade, participação, liberdades – com uma ou outra exceção para o burquini circunstancial -, alto grau de segurança jurídica. Não direi igualdade ou justiça social porque seria pedir muito.

Apenas, a admiração dá lugar ao espanto quando lembro que, enquanto operavam essas belas construções em casa, esses países se dedicavam à exploração colonial de outros povos, e quando vejo que ainda hoje, enquanto vendem barato o discurso da democracia, não fazem mais do que exercer, ou tentar, uma dominação de que os ditadores amigos ou os eleitos complacentes são os instrumentos, e cujos adversários merecem uma primavera que os venha arrancar de seus tronos.

Li em algum lugar, e me soou verdadeiro, que desde o início dos tempos a liberdade de uns se dá à custa da servidão de outros.

E, como diz a canção, pra não dizer que não falei de flores… Alguém me disse que a democracia representativa estava morta em todos os lugares, que os parlamentos já não cumprem a sua missão e, completava com a demonstração cabal, “veja o nosso Congresso…”

Ora, nosso Congresso anda bastante ocupado. A pergunta é se está cumprindo seu papel em relação à democracia brasileira. Afinal, quando todos os ritos e procedimentos tiverem sido cumpridos, quando todos os discursos, a despeito de ferirem de morte a gramática, tiverem sido proferidos a contento dos oradores e quando os votos estiverem contados, poderemos dizer que uma presidente foi eleita pelo voto popular mas foi derrubada por uma espécie de golpe democrático?

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