Eugênio José Guilherme de Aragão
Eugênio José Guilherme de Aragão foi ministro da Justiça durante o governo de Dilma Rousseff (PT) - FOTO: Divulgação Palácio do Planalto

Por Eugênio Aragão* para a Revista Brasileiros n˚113

Este texto faz parte do especial 2017 x 24 – visões, previsões, medos e esperanças da edição número 113 da Revista Brasileiros, onde articulistas e colaboradores foram convidados a pensarem sobre o que e o quanto podíamos esperar – se é que podíamos – para nosso País em 2017.

O mar não está para peixe. Vê-se, a olho nu, o Brasil derretendo. O golpe nos projetou num limbo institucional que ignorávamos existir. À beira da realidade de um Estado falido, assistimos ao Ministério Público insolente desafiar a representação popular. E o faz com uso de seus podres poderes de intimidação, prática que só conhecíamos do “lobby da bala”, das entidades representativas das polícias. E isso só é possível porque o Congresso Nacional atravessa sua maior crise ética da história, com bancadas insignificantes, ultraconservadoras em sua maioria, pulverizadas por quase três dezenas de partidos que não dizem quais são seus programas, seus ideais, seus escopos e nem sequer têm militância espontânea (coisa diversa de militância paga). Afinal, algumas centenas de parlamentares com contas a acertar com a Justiça facilitam a ousadia do órgão de persecução penal. E o discurso falso moralista, que reduz os problemas do Brasil ao campo da corrupção, conseguiu conquistar massas de corações e mentes providas de um par de neurônios apenas.

O Supremo Tribunal Federal (STF), guardião maior da Constituição, perdeu todas as oportunidades para defender o poder legítimo e colocar freios ao oportunismo político dos perdedores das eleições de 2014 e ao corporativismo abusado de algumas carreiras de Estado. Enquanto o País vivia uma de suas maiores crises políticas e éticas com o afastamento trapaceado da presidenta da República, o excelso sodalício decidia se consumidores poderiam entrar com sua própria pipoca nos cinemas ou se eram obrigados a comprá-la ali… Chega a ser um quadro surreal.

Paralelamente, a economia desfalece. A agressividade da Operação Lava Jato sobre grandes ativos empresariais dizimou perto de 30% do Produto Interno Bruto e levou consigo milhares de empregos. O esmagamento da produção petrolífera com conteúdo nacional levou ao colapso não só as indústrias de equipamentos, mas também estados da federação que deixaram de recolher impostos e auferir royalties. O estado do Rio de Janeiro é o mais concreto exemplo do estrago causado por falta de estratégia persecutória e econômica.

Nesse ambiente, o mercado encolhe e o apetite empresarial entra em regime de jejum. Investimentos deixam de ser feitos e desaparecem as perspectivas para um projeto soberano de desenvolvimento nacional.

A conjuntura política e econômica é propícia para aventuras e aventureiros, sejam eles parasitários, sejam populistas fascistas. Só estes nada têm a perder. Uns podem contar com a benevolência de rentistas e patrões ao norte do globo terrestre; outros se aproveitam do desânimo e das fobias coletivas para oferecer saídas fáceis e sem qualquer apego à realidade, para iludir as massas com falso sentimento de serem um povo unido, submisso a uma “nova ordem” que substitua a antiga, apodrecida com a corrupção e com o “comunismo” perverso.

É nesse contexto que se descortina 2017. O que esperar dele? Mais do mesmo, se as instituições não tomarem coragem de reinventar sua prática. Os desafios são enormes para o Judiciário e para o Legislativo. O Executivo, coitado, de protagonista de um projeto de democracia inclusiva, passou a ser reboque da história, sem qualquer autonomia para realizar políticas públicas, para governar. O golpe desfigurou o sistema constitucional presidencialista e o transformou num parlamentarismo de matilha, comparável à dinâmica duma massa de caninos famintos farejando por restos aqui e acolá, num aterro sanitário.

O que esperar do Judiciário? Difícil dizer. Um personagem emerge com poderes desproporcionais: o sr. ministro Gilmar Mendes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e da 2ª turma do STF. Nessa dupla condição, é ele que pauta os processos nos órgãos jurisdicionais em que funciona. E, só por isso, é o homem mais poderoso da putrefeita república. Dele dependem os destinos do sr. Michel Temer e dos principais atores do Legislativo. No TSE, pautar ou não pautar as ações do PSDB contra a chapa de Dilma nas eleições de 2014 pode significar vida ou morte do governo nascido do golpe parlamentar; na 2ª turma do STF, pautar feitos da Lava Jato num dia de quorum completo ou quorum incompleto pode significar rejeição ou admissão de denúncias, concessão ou denegação de habeas corpus e, até mesmo, condenação ou absolvição de réus. Quem mais pode tanto? Não é de estranhar, pois, que o presidente do Senado, senador Renan Calheiros, arquivou de plano pedidos de impedimento manejados naquela casa legislativa contra Gilmar. Afinal de contas, depende dele se Renan será ou não condenado e quando o será…

Na Procuradoria-Geral da República o corporativismo venceu a esperança, quando o sr. Rodrigo Janot resolveu se assumir como mais um dos muitos justiceiros que pululam no Ministério Público Federal. Saiu do armário. Afinal, com o golpe, os tempos são mais propícios para o perfil de moralista-punitivista. Dá mais sustentação do que ser crítico do nosso falido sistema de Justiça. Remar a favor da maré e fingir que a crise é problema dos outros torna a vida mais confortável. Por isso, a escolha de José Bonifácio como seu vice (independentemente de se tratar de pessoa competente e correta em sua atuação) já foi prenúncio dos novos tempos de maior clareza política: Bonifácio foi procurador-geral do estado de Minas Gerais no governo de Aécio Neves e sucedeu, no governo FHC, Gilmar Mendes na AGU. Não tem como alguém ser mais próximo do tucanato de alta plumagem. A Operação Lava Jato, que Janot se recusou a civilizar por medo de desgaste com a mídia golpista e com seu entourage de justiceiros, poderá finalmente fechar seu movimento fortíssimo e entrar no pianíssimo, deixando de lado seu ativismo de oposição. Afinal, já fez o servicinho que se esperava dela, que era inviabilizar o governo da presidenta legitimamente eleita. Agora que pode vir a se aproximar demais de personagens do outro lado do rio, é melhor botar esses meninos para estudar no exterior ou se mudarem para capitais mais atrativas.

Judiciário e Ministério Público Federal estão, por conseguinte, na área de influência do PSDB. O fato de Rodrigo Janot ter jantado há anos com José Genoino não muda em nada essa constatação.

As perspectivas são, nessa constelação de condições, muito propícias para um redimensionamento da importância dos perdedores da última eleição presidencial no governo do País, com franco apoio do complexo judicial em sua cúpula. Para Temer, não sobrará muito a não ser se inclinar a essa realidade e se transformar em marionete da direita que milita por um projeto de desnacionalização política e econômica do Brasil. Para quem odiava ser vice decorativo e sonhava tanto em ser presidente, ter sua jovem esposa como primeira-dama apresentável nos salões da República, ocupar seus dias penteando a vaidade, este é um mal menor. O PMDB nunca teve convicção de nada a não ser de se servir das facilidades que o poder proporciona, independentemente de quem puxa os fios. Ser presidente decorativo da matilha fuçadora nem é tão ruim assim. O Palácio da Alvorada tem seus encantos.

Mas se houver um problema de sustentabilidade do governo Temer, a guilhotina está pronta para lhe cortar o pescoço no TSE. O timing está na mão do clemente verdugo, presidente da corte. E, em saindo Temer, os mestres em conchavos conspirativos do PSDB saberão fazer o sucessor em eleições indiretas. Ficará todo mundo feliz nesse parlamentarismo de matilha, pois até o atual PGR poderá fazer de Bonifácio seu sucessor, garantindo dias mais tranquilos para a governabilidade do presidente biônico.

No Congresso, espera-se a substituição dos presidentes da Câmara e do Senado, provavelmente tucanos ou filotucanos. É como se vivêssemos num mundo paralelo, nada fácil e que demanda muito Sonrisal para suportar. Mas o rebuliço não se fará esperar. Quando aparecer a extensão do envolvimento de parlamentares com o esquema de propinas desnudado pela Lava Jato, muitos terão que se despedir do mandato. Talvez seja até mesmo o caso de se cogitar de novas eleições, pois esse Congresso não terá legitimidade de ser parceiro do governo falido ou da escolha de um chefe de governo biônico.

Por fim, o povo. Ah, o povo… nesses tempos anda tão esquecido, a não ser quando o MBL se arroga qualidade de “povo”, com a bateção de panelas Le Creuset nas varandas gourmet da Asa Sul, da avenida Faria Lima, da avenida Vieira Souto ou dos edifícios das vizinhanças do Farol da Barra. Aí dão um jeito de ser lembrados, mesmo que se trate de uma fraude. Mas o verdadeiro povão, aquele que ganhou inclusão com os programas de Bolsa Família, Pronatec e Minha Casa Minha Vida, se não souber se articular e reagir à altura, estará regressando à miséria, com uma volta a três décadas atrás, sem programas de inclusão social e de renda para os mais pobres. O tucanato nunca se preocupou com eles mesmo e há os que pensam que investimento social é jogar dinheiro fora, pois alimentaria meia dúzia de parasitas petistas. O resultado pode ser uma queda vertiginosa dos índices de desenvolvimento humano, de matrículas em escolas e universidades públicas por alunos e estudantes de baixa renda, com a reintrodução do Brasil no mapa da fome. É preciso reagir maciçamente contra essa partilha do Estado e de seus recursos por aqueles que o tomaram de assalto. Se não for por via de provocação de instituições, já que estas foram capturadas pelo golpe, há de ser pela articulação da parte mais esclarecida da sociedade com os movimentos populares.

E os militares? Até agora estão quietinhos. Mas podemos ter certeza de que estão muito incomodados. As Forças Armadas brasileiras são compostas de pessoas da classe média urbana. Têm por isso perfil mais conservador. Mas adotam uma doutrina do interesse nacional que esbarra frontalmente com aquilo que se está bagunçando no governo do golpe. A prisão e condenação, com estardalhaço, do almirante Othon, pai da energia nuclear brasileira, o desmonte de indústrias estratégicas, como a naval, preparada para renovar a frota da Marinha de Guerra, ou a Aeronáutica, que tem em sua carteira a Força Aérea Brasileira como um dos principais clientes, não podem ser aceitos sem reação. Não seria de sua tradição de defesa do Brasil. Sabem nossos bravos soldados muito bem como os governos de 2003 a 2016 se preocuparam seriamente com seu reequipamento, recuperando os anos perdidos do governo de FHC. Voltar atrás e desistir do papel estratégico do Brasil na geopolítica é crime de lesa-pátria, praticado para atender a podres interesses alienígenas e garantir o ganho de uma elite egoísta e sem visão do mundo e da história.

Em resumo, temos muito a esperar do ano vindouro, menos tranquilidade. O acirramento da crise é inexorável com um desfecho barulhento ao jeito de um clímax numa ópera wagneriana. Se o que vier depois nos ajudar a ver luz no fim do túnel, será um ganho. Fica para as corporações das carreiras de Estado, para o Parlamento e para a população a lição de que não se briga com Constituição pactuada, pois o rebuliço que se segue não compensa as vantagens auferidas por poucos gananciosos ávidos por poder.

Que Deus mostre que é brasileiro em 2017!

*Eugênio Aragão é ex-ministro da Justiça. vice-procurador-geral da República e professor de Direito Penal da Universidade de Brasília (UnB)


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