Michel_Temer
FOTO: Diego DEAA - Wikimedia Commons

Por Lincoln Secco e Fernando Sarti Ferreira*

Este texto faz parte do especial 2017 x 24 – visões, previsões, medos e esperanças da edição número 113 da Revista Brasileiros, onde articulistas e colaboradores foram convidados a pensarem sobre o que e o quanto podíamos esperar – se é que podíamos – para nosso País em 2017.

Após o golpe midiático-parlamentar, o tempo parece ter se acelerado. Não como nos períodos de transformação radical, mas, como numa espécie de espelho macabro, inaugurando um período de restauração.

Na Noite dos Pesadelos do dia 10 de outubro de 2016, uma versão demoníaca da Noite dos Milagres de 4 de agosto de 1789, quando a Assembleia Constituinte francesa aboliu os privilégios feudais, o setor hegemônico da burguesia brasileira – e especialmente a mais mesquinha e caipira de todas, a burguesia financeira paulista –, preferiu salvar seus anéis achando que tinha cacife para ficar com os dedos. Mas na verdade abriu a possibilidade de ter seu braço decepado numa explosão de fúria que, talvez, somente será comparável à Revolução Haitiana. É o único horizonte que se pode vislumbrar com o congelamento do orçamento federal somado ao ataque aos já precários direitos trabalhistas.

Entre o salto qualitativo da dominação burguesa que representaria uma reforma tributária progressiva que conseguisse ampliar o projeto de expansão de direitos iniciados em 1988 e timidamente aprofundado pelo PT, a burguesia financeira paulista e os seus colegas – zeladores de galpões, administradores do cemitério da segunda revolução industrial no Brasil, grileiros dos Jardins – e a recessão, ficaram com a segunta opção. Não conseguem se livrar dos mecanismos mais brutais de exploração que há tanto tempo os pariu e partem para uma nova rodada de espoliação de gente que nem sujeito de direito chegou a ser. Não à toa seus monumentos e nomes de ruas e praças são celebrações à acumulação primitiva de capital por meio da conquista de terra indígena, da escravidão e das ditaduras.

Eleições municipais

Na imprensa golpista logo se passou a celebrar o programa infernal de Temer com uma possível aprovação do golpe pelas urnas. Nem terminavam as eleições municipais de 2016 e uma série de epitáfios eram escritos sobre a esquerda partidária, especialmente o inimigo número 1 do País: o para lá de moderado PT. Antes das eleições, cerca de 1/5 dos prefeitos petistas já havia abandonado o partido. Ele perdeu metade de suas prefeituras conquistadas em 2012 e se tornou apenas o décimo em número de prefeitos eleitos.

Haveria que se perguntar se os outros nove que estão à sua frente são partidos de fato. Afinal, cresceram o PRB, PP, PSB e outras legendas de aluguel sem nenhuma identidade política. Também pouco se comenta o fato de que, apesar do baixo índice de coligação (22,7% dos candidatos petistas saíram sem apoio de qualquer partido), o PT se aliou ao PMDB em 648 municípios. E isso depois do impeachment!

Afinal, os resultados das eleições municipais servem para quê? O número de variáveis que ingressam na explicação dos resultados é tão grande que é difícil compreendê-las.

Na principal cidade do País, onde um playboy da lumpemburguesia foi eleito, a imprensa servil se apressou em dizer que a periferia havia abandonado a esquerda. É curioso que, além do bairro de Pinheiros, o PT obteve votos acima de sua média eleitoral no extremo leste e sul da cidade1. Se fôssemos seguir o mapa eleitoral, poderíamos dizer o contrário da grande imprensa: o PT perdeu até na periferia consolidada, logo se tornou um partido de base social ainda mais empobrecida.

E o que dizer dos votos nulos e brancos e abstenções? Além do seu aumento em São Paulo, a recusa do voto saiu do centro expandido (eleição de 2012) para a periferia (2016).

Mesmo intelectuais de esquerda se esquecem da advertência de Milton Santos em seu livro A Pobreza Urbana: quando se mede qualquer coisa, é necessário deixar de lado algumas qualidades do fenômeno. Logo, o que importa é a teoria que produz e interpreta os dados. Os pobres, continua ele, não podem ser culpados pela pobreza e o consumismo não pode ser culpa dos consumidores. Pode-se criticar a postura petista de não haver modificado a estrutura de produção e, portanto, do consumo do País.

Consumismo?

Muitos analistas acreditam que os governos petistas teriam concedido aos pobres consumo, mas não consciência de classe. Evidentemente, a classe trabalhadora, para tais analistas, só poderia ser iluminada de fora por eles mesmos. Depois de “subir na vida”, os ingratos se comportariam como classe média. Uma vez tendo parado o crescimento econômico que permitia a mobilidade social, eles se voltariam contra a esquerda. Mas quem compara o nível de vida de 2016 com o de 2003 tem que levar em consideração que a pobreza é um fenômeno relacional acompanhado de valores sociais e culturais históricos. Só se é pobre em relação a algo.

Igualmente a tese do conservadorismo dos eleitores pobres, desejosos de proteção estatal, mas contra o radicalismo político, trata-os como seres naturais e não históricos. Não se leva em consideração que a alternativa política que se lhes ofereceu não os interpelava como classe e nem solicitava sua mobilização. Em linguagem comum: por que alguém defende quem não quer ser defendido? Isso não quer dizer que se aceitará passivamente a investida golpista contra as conquistas sociais que os pobres obtiveram.

Dessa vez, a burguesia embarca em uma aventura que pode levar à sua própria ruína. Embarca, como a burguesia alemã em 1933, em uma missão suicida. Qual vai ser o resultado da destruição do PT e do desmonte dos parcos direitos constantes na Constituição de 1988?

A esquerda estruturalista, que entende o comportamento das classes como algo racional e funcional, deve ser sumariamente ignorada. Não há cambalhota teórica ou conceitual que consiga explicar ou relativizar tamanha violência. Não há nenhum projeto pré-concebido; não se está seguindo nenhuma agenda. Não se deu o golpe para alinhavar o desenvolvimento econômico brasileiro a um determinado projeto hegemônico – como no caso do golpe de 1964. Se havia algum respaldo ou perspectiva de guinada no posicionamento internacional da economia brasileira, a verdade é que a derrota de Hillary Clinton – sintoma da crise sistêmica por que passa a hegemonia mundial estadunidense – colocou água no chope dos golpistas, como se pode atestar ao nos debruçarmos sobre a repercussão da vitória de Trump entre os grupos que patrocinaram o golpe no Brasil.

A instabilidade seguirá por muito tempo. Haverá golpe dentro do golpe? Haverá eleições em 2018? Após abrirem as jaulas e libertarem todos os animais do zoológico, conseguirão as principais forças políticas do golpe controlar sua base radical filofascista? A instabilidade e a explosão social são as únicas certezas para o nosso imediato futuro.

Antes um fim com terror do que um terror sem fim

A médio prazo, tendo em vista a radicalização do processo de criminalização da esquerda e os problemas que a instabilidade produzem para o big business, é bem provável que ocorra uma estabilização semelhante ao México: uma aliança de grandes grupos empresariais com o capital internacional, secundadas por grupos armados paramilitares. A necessidade de sufragar o regime, em nome do Estado de Direito e da democracia, provavelmente levará à ascensão de um outsider do sistema político, seja ele em sua versão mais dura, um juiz ou militar candoroso e implacável, ou mais adocicada, porém não menos perversa, de um apresentador de TV boa pinta, de perfil um pouco mais liberal.

A figura do empresário supostamente eficiente parece ter sucesso restrito a algumas regiões do País. Assim como tivemos nossa Noite dos Milagres demoníaca, é muito provável, seguindo o script de regressão total que vivemos, que surja um sub-Napoleão.

Para a esquerda não há muita perspectiva do que fazer, mas sim do que não fazer. É preciso retomar algumas práticas e abandonar algumas ilusões. Sua preocupação pela luta institucional ou a empurra para um inútil bom-mocismo republicano ou às rodas pouco probas do financiamento empresarial de campanhas.

Ao reconhecermos os parcos avanços dos últimos anos, não estamos de maneira nenhuma defendendo a social-democracia ou “um capitalismo mais humanizado”, mas apenas recordando que a sentença “socialismo ou barbárie” não é mera palavra de ordem, mas um alerta, principalmente porque a regressão à barbárie deixa de ser uma tendência e transforma-se em uma pulsão sob o neoliberalismo.

* Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na Universidade de São Paulo. Fernando Sarti Ferreira é mestre e doutorando em História Econômica na USP


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