O que seria uma “arte sertão”? Na perspectiva proposta pela curadora Júlia Rebouças para o 36º Panorama da Arte Brasileira, o conceito refere-se mais a um modo de pensar e agir do que ao lugar geográfico e cultural que costumamos associar à palavra sertão. O público que visitar o Museu de Arte Moderna de São Paulo entre os dias 17 de agosto e 15 de novembro, portanto, não vai encontrar uma mostra sobre o semiárido brasileiro ou com artistas nele nascidos, mas sim uma exposição que tem “experimentação e resistência” como alguns de seus pilares.
Trata-se, segundo Rebouças, de “um modo de pensar que compreende um contexto e tenta se relacionar com ele; que cria soluções a partir do que está disponível; que não cede, por exemplo, às pressões de um sistema hegemônico, mas que vai tentar encontrar fissuras nos fluxos clássicos de poder”. A curadora se refere, ainda, a uma produção artística que “têm especulado não apenas sobre circuitos alternativos, mas também sobre outras materialidades, outras relações de autoria e colaborações com distintas disciplinas e campos do saber”.
Foi a partir desta ideia de uma “arte sertão” que Rebouças selecionou os 29 participantes da mostra, vindos de diferentes regiões do país e em sua maioria nascidos entre os anos 1980 e 1990. “Uma geração que ainda não teve uma grande chance institucional de mostrar seu trabalho ou que teve pouco lugar para fazer seu debate acontecer”, diz ela, e que levanta questões atuais sobre, por exemplo, racismo estrutural e violência policial, uso do espaço público, causas indígenas e ambientais, questões de gênero e existência de outras espiritualidades possíveis.
Com uma maioria de trabalhos comissionados, a exposição reúne obras de Ana Lira, Ana Pi, Ana Vaz, Antonio Obá, Coletivo Fulni-ô de Cinema, Cristiano Lenhardt, Dalton Paula, Daniel Albuquerque, Desali, Gabi Bresola & Mariana Berta, Gê Viana, Gervane de Paula, Lise Lobato, Luciana Magno, Mabe Bethônico, Mariana de Matos, Maxim Malhado, Maxwell Alexandre, Michel Zózimo, Paul Setúbal, Rádio Yandê, Randolpho Lamonier, Raphael Escobar, Raquel Versieux, Regina Parra, Rosa Luz, Santídio Pereira, Vânia Medeiros e Vulcanica PokaRopa. Leia abaixo a entrevista completa com a curadora Júlia Rebouças.
ARTE!Brasileiros — Sobre o tema deste Panorama, você já ressaltou que com “sertão” não pretende necessariamente tratar da caatinga, do semiárido ou dos estados que compõem o Nordeste, mas sim de uma “arte sertão”. O que seria essa “arte sertão”?
Júlia Rebouças — A primeira colocação é pensar em sertão não como um tema, mas como um conceito. Porque um tema você ilustra, reage a ele, e é disso que eu estou tentando escapar. Eu acho importante pensar sertão não apenas como um lugar ou matriz cultural, mas como um modo de pensar. E é nesse sentido que eu falo em uma “arte sertão”, que eu acho que é um modo de pensar que engendra experimentação e resistência; que compreende um contexto e tenta se relacionar com ele; que cria soluções a partir do que está disponível; que não cede, por exemplo, às pressões de um sistema hegemônico, mas que vai tentar encontrar fissuras nos fluxos clássicos de poder. Por isso falar de uma arte que tem sertão como epistemologia é também se perguntar de quais práticas estamos falando. Então eu estou aqui especulando sobre o que seriam esses modos de pensar e agir, mas também estou tentando encontrar na prática dos artistas os lugares para onde eles apontam.
E quais respostas tem encontrado?
Tem um aspecto que aparece em vários trabalhos no Panorama que tem a ver com pensar na arte como um mecanismo de cura, retomando algumas questões e feridas que ficaram na história, nas relações. São artistas que propõem, por meio de suas obras, ou uma reparação ou um processo de reelaboração de questões históricas. Por exemplo o Dalton Paula, o Antonio Obá e a Ana Pi. Tem um outro aspecto dessa epistemologia sertão que tem aparecido que tem a ver com uma certa reverência ao mistério. Um entendimento de que nem tudo se explica pela linguagem, que a ciência não dá conta de tudo, que a razão não alcança todas as coisas e que há um conjunto de conhecimentos, práticas e sociabilidades que funcionam a partir do que a gente não sabe e não explica. Isso se manifesta na espiritualidade, mas também simplesmente nesse conhecimento tácito de saber que têm coisas que a gente troca e que nunca serão elaboradas, estão no campo sutil.
E quando eu falo de uma “arte sertão” estou pensando também nessa característica meio indomável do sertão, que é uma característica que eu também vejo na arte. Por mais que diante do sertão a gente tente classificar, cercar, dominar, controlar ou estruturar, essa é sempre uma tarefa falida, porque o sertão sempre escapa, ele é sempre alguma coisa diferente. É só pensar em todas as tentativas da própria cultura brasileira de definir o que era sertão, do romance de 1930 ao cinema novo. E o sertão não se deixa definir. Sempre há um traço de estereótipo, ou um recorte específico, ou um olhar a partir do lado de fora. E isso eu acho que é uma característica da arte também. Você pode conceituar, delimitar, institucionalizar e mercantilizar a arte, mas algo sempre escapa. Quando você percebe, a arte está mais adiante. E o tempo inteiro a gente está tendo que atualizar e reelaborar o que é arte, o que são as práticas artísticas, como é que a arte lida com o poder, com a política, com o sistema. Então eu acho que a arte tem essa qualidade sertão, de ser de alguma maneira incolonizável. Ainda que ela possa ser colonizada, tem alguma força dela que não se deixa apreender.
Isso tem a ver com o seu interesse em contemplar uma produção que também existe fora dos circuitos institucionais e mercadológicos estabelecidos?
Eu acho que os artistas têm especulado não apenas sobre circuitos alternativos, mas também sobre outras materialidades, outras relações de autoria, colaborações com distintas disciplinas e campos do saber. E eu acho que isso é, por conceito, o que eu entendo por uma “arte sertão”. É claro que têm artistas que trabalham nas galerias, com suportes mais clássicos, mas não acho que simplesmente por estar na galeria ele não possa estar questionando e buscando outras formas de existir e de atuar. O Maxwell Alexandre, por exemplo, é um artista que está engajado com galerias, expõe em museus e instituições, mas ao mesmo tempo está sempre tensionando, buscando outras formas de existir fora desses meios – na comunidade onde vive, por exemplo.
E tem artistas que estão na universidade, outros que algumas vezes nem reconhecem sua prática como prática artística. Então acho esse um lugar muito interessante para observar, muito pulsante do que estamos chamando de uma produção de experimentação e resistência. Que não é necessariamente uma oposição ao sistema e ao mercado, porque acho interessante fazer as coisas se atravessarem o tempo inteiro. E faz parte dessa prática sertão buscar outras formas de existir que não fiquem submetidas. Isso é o que eu acho que importa, você não estar submetido aos ditames do mercado, das instituições ou aos desejos dos curadores.
O professor Durval Muniz diz que o sertão é uma experiência múltipla, embora tenda a ser narrado a partir de determinados clichês. Sua proposta tem a ver com combater clichês e estereótipos em torno da ideia de sertão?
Sim, porque não é “sobre” o sertão. Quando a gente fala do sertão como tema ele tem esse lugar de reiteração de uma imagem e de uma identidade que são parte de um projeto político, feito em grande medida para a submissão do próprio sertão ou do próprio Nordeste – já que sertão e Nordeste são muitas vezes tratados quase como sinônimos. Então é fundamental escapar disso, não reiterar esses clichês. Em alguma medida eu acho que seria importante falar de alguns fundamentos de uma produção do Nordeste ou de artistas importantíssimos que estão no semiárido, mas eu resisti a isso. Porque achei que esse seria o caminho mais fácil, tentar repercutir essa produção direta, essa imagem direta. E quando a gente olha, por exemplo, temos a exposição À Nordeste, que eu até brinquei que é como se fosse o fundamento teórico do Panorama. Temos o livro do Durval, a peça A Invenção do Nordeste, que ganhou o Prêmio Shell, o livro À Cidade, do Mailson Furtado, temos a Flip também dialogando com essa temática. Então eu acho que esses clichês e a necessidade de desconstruí-los, isso está colocado, está no debate. E eu queria com o Panorama dar um passo em outra direção, pensar no sertão não como esse conjunto de imagens e afetos, mas como esse modo de pensar e existir.
E falando mais diretamente dos artistas, como se deu a escolha desses 29 nomes?
Eu tentei identificar artistas que já tinham uma “prática sertão”, ao invés de escolher as pessoas e fazer eles reagirem a um tema apresentado. Claro que toda seleção é parcial, limitada. Há uma série de outros artistas com quem eu poderia estar trabalhando. Mas, enfim, eu quis ter alguma diversidade regional, porque eu acho importante fazer o exercício de olhar para lugares menos óbvios, e houve um exercício para tentar quebrar um pouco essa estrutura em que as exposições são majoritariamente feitas por homens brancos. Então tem mais não brancos do que brancos e mais mulheres do que homens. Isso não era exatamente uma meta a cumprir, mas acho que todo mundo que atua hoje em dia tem que se preocupar com outro tipo de representação. E acho que nesses lugares, que estão menos visíveis ou menos representados, é onde normalmente, por natureza, há mais experimentação e resistência. Mais dessa “arte sertão”.
Quando você fala em resistência, impossível não pensar no contexto político que estamos vivendo, com um governo conservador e discursos muito contundentes contra a arte e a cultura. A linha curatorial do Panorama é também um tipo de resposta a isso?
Acho que o Brasil está em um momento muito crítico em termos políticos, nas suas relações sociais, na maneira de construir seus lugares de afeto e as possibilidades de encontro. Isso para não falar das questões mais estruturais no que tange à cultura. Mas não acho que o Panorama seja uma resposta, porque é tudo muito velho e ao mesmo tempo muito novo. Sobretudo do período eleitoral para cá ficou muito claro que é preciso se reorganizar, que qualquer estratégia de oposição a esse governo precisa ser reelaborada, porque muitas táticas e práticas foram superadas, vencidas. E acho que isso tange à arte também, para pensarmos como a arte vai reagir. Acho que qualquer reação imediata vai ser panfletária e superficial. O que às vezes é necessário, no calor do momento, mas acho que talvez esse Panorama tente discutir mais o que seria um pensamento tático ou estratégias de reorganização dessa resistência do que trazer respostas ou oferecer um confronto frontal e direto. Muitos artistas estão fazendo um diagnóstico do que está acontecendo no presente, mas muitos estão especulando maneiras de existir. Estão falando sobre como é que os corpos dissidentes vão poder existir a partir de agora, como é que eles existiram até esse momento, como é que se faz uma reparação histórica, como é que se desconstroem práticas de violência e opressão. Eu acho que, nesse sentido, é um desejo também de que seja uma exposição propositiva, não com soluções ou respostas, mas com apontamentos, tentando organizar um pouco esses afetos de uma repactuação e da necessidade de existir diante do desmonte.
Você teme algum tipo de reação negativa ou violenta, considerando o que vimos acontecer no Brasil nos últimos anos?
Nós não trabalhamos com medo ou com nenhum tipo de restrição. É claro que qualquer estrutura reacionária tem medo da arte. Eles é que têm medo da criação, da imaginação, do pensamento crítico. Isso fica muito claro quando o foco de ataque não é só a arte, mas a educação, a ciência, as universidades. Só um projeto extremamente reacionário precisa com tanta força desqualificar e desmontar as possibilidades de criação. Na verdade, é muito lógico que esse governo tenha medo de tudo que tudo gere o novo, que nos coloque em movimento. E nós já entendemos que diante de factoides e mentiras se produzem linchamentos terríveis. Então eu estou tratando com conteúdos muito potentes, muito ricos, mas não acho que eles sejam mais perigosos de serem atacados, mais passiveis de serem censurados, porque qualquer coisa é passível de ser atacada e censurada, sobretudo as mentiras criadas. Muitas dessas questões criadas em torno da arte são falsas questões, são polêmicas inventadas. Então não dá pra trabalhar pensando nisso, temos que trabalhar pensando no que precisa ser feito.
valores e enriquecimentos instigantes…
Entrevista inspiradora para nós artistas que estamos resistindo a cada minuto…
Grata!