Diretor-geral da Pinacoteca do Estado de São Paulo desde maio último, o alemão Jochen Volz fala sobre seus planos para o museu, sua experiência à frente de outras importantes instituições culturais no Brasil e no exterior, e também opina sobre o sistemático ataque conservador contra as exposições de arte no País.
Quais são seus planos para a Pinacoteca?
Jochen Volz — Uma instituição é muito mais do que uma programação de exposições. Tem politicas de acervo, de manejo de obras, de recursos humanos, envolve muitas equipes, é uma grande formadora de profissionais, tem uma programação educativa, uma programação cultural. São perfis diferentes. Acho que o primeiro tempo de uma chegada como gestor é esse momento de escuta. Foi um desejo meu pensar, nesses primeiros meses, as várias ações acontecendo em dois prédios. Ainda temos o Memorial da Resistência, que é um equipamento do Estado administrado pela mesma OS (Organização Social), uma instituição parceira, vizinha, dentro do mesmo prédio.
Colocar todo mundo no mesmo pé?
Sim. Ou pelo menos todo mundo consciente que a Pinacoteca é só uma dessas tantas ações. Ela não é uma ação só educativa, só manejo de acervo, só programa de exposições, ou a programação cultural. A Pinacoteca é a soma de tudo isso. Foi um exercício coletivo, uma tentativa de entender quais são os programas perenes, especiais, quais estão vinculados a uma exposição e quais tem uma vida independente. Tentar organizar isso de uma forma que todos entendam que a soma de tudo isso é a vida da instituição. Eu achava muito importante falar de todas as áreas num único documento, que chegasse ao nosso publico.
Na Pinacoteca há uma ambiguidade, talvez até uma contradição, porque ao mesmo tempo em que ela é histórica, tem esse grande acervo, ela cada vez mais vem se tornando contemporânea. Como você lida com esses dois lados?
Acho muito interessante pensar que ela tem um perfil muito claro. Mas pensando um pouco no histórico da Pinacoteca, é possível notar que mesmo quando foi criada ela já serviu para ensinar os jovens artistas. Era um equipamento de ensino. Então na verdade ela sempre foi muito ligada à arte contemporânea da sua época. Ela também tem essa função de contar uma história da arte brasileira, mas ela nunca se entendeu só como um museu de arte brasileira. Quer ser um museu de diálogos internacionais.
Muito se falou quando você foi convidado que o grande interesse era exatamente abrir esse canal com a arte internacional. Você acha que a arte brasileira está mais integrada?
A colaboração que eu pude dar nos últimos anos foi criar diálogos entre artistas brasileiros e outros de fora do país, em ambas as direções. Isso vem acontecendo naturalmente, mas historicamente alguma coisa mudou. Essa coisa de caixinha de arte brasileira é muito menos marcante. Desde os anos 1990, com mais naturalidade, artistas brasileiros circulam em diálogo com artistas do mundo inteiro. A própria evolução da Bienal de São Paulo contribui para isso. Desde 2006 ninguém mais vem com o rótulo de ser artista inglês, holandês, ou sul-africano, mas sim porque está em sintonia com uma questão posta. Para mim o interesse é pensar um pouco como criar diálogos mais estratégicos. Trazer pura e simplesmente um nome famoso da arte internacional para o Brasil me parece insuficiente. É interessante pensar quais diálogos podem ser criados que realmente mostram o que fazemos aqui de forma diferente, que modifiquem nosso pensar, ou nosso olhar, nosso entendimento, nossa visão do todo. Acho que isso é um desejo de operar muito estratégico.
Já li que no início de seu trabalho na Portikus, em Frankfurt, você se via mais como um realizador de exposições do que como um curador.
Organização de exposições: é o que respondo quando me perguntam o que faço. Nunca me senti como autor de um projeto. Até na Bienal de São Paulo, por exemplo, que é obviamente um projeto mais autoral, para mim foi muito importante que isso tenha sido um projeto coletivo, tanto com outros curadores como em diálogo com todos os artistas, muitos deles que nem participaram da mostra e que talvez nem saibam como foram importantes também na formação do projeto. E não só artistas, mas acadêmicos, lideranças, várias outras figuras. Eu entendo que somos formados por todos os encontros que temos.
Você já dirigiu, no Brasil, instituições de grande importância. Inhotim, Bienal e Pinacoteca compõem um bom trio. Cada uma dessas instituições tem suas especificidades. Você parece prestar atenção no que cada uma delas pode render.
Em cada uma eu estava num momento muito específico. Quando fui chamado para colaborar com Inhotim, a instituição refletia sobre a possibilidade de criar seu próprio perfil, a partir do contexto em que está inserida, em Brumadinho, sem outros museus em torno. Foi um processo de aprendizado em conjunto. Mas também isso foi 13 anos atrás, estava num outro momento. Tinha relacionamento com artistas, mas pouca experiência com gestão de instituições e a gente foi aprendendo junto. A Bienal de São Paulo é totalmente outros quinhentos. Era uma situação extremamente privilegiada, para a qual fui convidado não como gestor, mas como curador. Trata-se de uma instituição consolidada, com uma equipe consolidada e muito bem gerida, que reage a uma proposta curatorial e ajuda que isso se torne realidade. Foi um privilégio enorme fazer isso. Agora para mim a Pinacoteca é um outro momento. É uma das instituições de arte com uma das histórias mais longas no pais. Tem muita tradição, muita experiência e corpo técnico incrível. É um convite para ajudar a partir da minha experiência de trabalho com instituições de fora e brasileiras. Ajudar a pensar como uma instituição desse peso pode continuar crescendo. Porque um museu só é ativo enquanto coleciona.
Você tem uma experiência, uma vida, uma família, uma vivência brasileira. Não é exatamente um curador estrangeiro. Como é ter essa dupla nacionalidade?
Minha carreira profissional aconteceu muito mais no Brasil do que fora. Eu devo a arte brasileira muito mais, de uma certa forma, do que à cultura alemã ou europeia. Por outro lado, nesses anos em Inhotim percebi que vinha assumindo cada vez mais um papel daquele curador que conhece o Brasil, mas tem um olhar de fora. O que pode ser uma perspectiva interessante, mas as vezes é muito delicado também. Em 2012, quando aceitei o convite de trabalhar na Serpentine em Londres foi um pouco uma reação a isso. Esse perfil de estrangeiro que trabalha no Brasil principalmente com artistas ou com arte brasileira, ou trabalha fora com artistas brasileiros, não me parecia suficiente. Acompanhei um monte de exposições durante esses três anos e meio que fiquei lá. Aumentar o vocabulário foi muito importante. Além disso, hoje há mais pessoas com pesquisa similar, outros curadores, outros organizadores de exposições que hoje moram e trabalham no Brasil e que também são estrangeiros. A situação de 2004 para cá mudou muito.
Você fala muito da importância da troca com os artistas. Além do casamento e da proximidade com o trabalho da Rivane Neuenschwander, o contato com a obra de Cildo Meireles foi fundamental em sua trajetória, não?
A primeira exposição com um artista brasileiro que organizei foi com a Rivane. Quando a convidamos para fazer um projeto em Frankfurt em 2001 ela disse: “Curioso, estão me convidando e não convidam o Cildo. Está faltando esse olhar para uma geração que nos ensinou muito”. A partir disso eu comecei a pesquisar mais o trabalho do Cildo e me aproximar dele. Fiz um convite a ele para um projeto em Frankfurt já em 2002, que se realizou em 2004. No segundo semestre de 2004 trabalhamos junto em Inhotim e desde então vários projetos foram feitos. Nesse sentido ele foi muito importante como uma das figuras com que até hoje tive mais diálogo, um diálogo contínuo.
E tem na obra dele talvez essa relação entre conceito e um cuidado com a forma, uma delicadeza, um afeto, com o próprio fazer, que você parece buscar na arte brasileira?
É, eu já falei isso. Eu vejo muito entre esses dois polos dois artistas históricos com que trabalhei intensamente, que foram Tunga e Cildo. Uma característica que me fascina na arte brasileira, que a diferencia de outras, é essa convergência entre discussão formal e discussão conceitual. A poética e política sempre é integrada. Não se separa. É diferente de uma arte inglesa, que talvez tenha uma reflexão sobre modos de fazer, uma coisa mais dura. Ou de uma escola mais alemã onde ou domina o conceitual ou o formal; são pontos diametralmente opostos mas podem estar juntos. É uma coisa que os pesquisadores em geral estão muito interessados, a arte brasileira ensina.
Talvez a gente esteja até vendo um refluir disso? Em função desse retrocesso reacionário, de um embate mais intenso em torno de questões importantes. As coisas parecem estar ficando mais duras?
Acredito muito no poder da arte, estou convencido de que a arte sempre sobrevive. Obviamente em momentos favoráveis ela assume outras formas, mas ela também nasce a partir da resistência. Já a cultura não. A cultura é um pouco aquele vocabulário que nós criamos coletivamente para poder falar disso, entender nosso ser no mundo, de uma forma mais complexa.
Gosto de usar esse paralelo mais óbvio, entre cultura e agricultura. Quando a gente joga veneno num terreno, não cresce mais nada e a gente perde essa riqueza e a consciência dessa riqueza. Estou mais preocupado com a dita cultura, a partir da qual a gente consegue estabelecer, defender e resistir a essas invasões super radicais e ultra conservadoras. Estou muito mais preocupado com perder essas memórias – perder por exemplo essa noção que falávamos de integração entre uma poética, uma política, um conceito e uma formalização, algo que é tão diferencial e tão único na arte brasileira. Isso é muito triste.
Como enfrentar isso?
Acho que a gente tem que fazer muito esforço para defender nossas instituições como espaço plural. A diversidade é o único jeito, A gente pode aprender por exemplo com culturas indígenas que claramente cultivam a terra em múltiplos caminhos, sempre visando a diversidade. Se alguma coisa está sendo ameaçada, tem outras formas que seguram a cultura em conjunto. Estamos vivendo uma situação histórica na qual a diversidade está sendo atacada, a multiplicidade está sendo reduzida para que se tenha uma só narrativa predominante e isso é muito perigoso. O papel principal das instituições culturais é promover a diversidade, a pluralidade. Criar formas, programas inclusivos para todos, entender que as linguagens são muitas, que os discursos são muitos. É nosso papel.
Você poderia fazer um balanço da 32a Bienal? Foi uma bienal que quebrou vários paradigmas e a noção de incerteza, que balizou a mostra, parece cada vez mais presente hoje.
Para mim é muito curioso isso, é um processo que ainda está em andamento. Em vez de fechar em dezembro, ela se desdobrou num monte de outros diálogos. Passou por doze cidades brasileiras, foi para Bogotá, para o Porto, em Portugal, ela é muito viva. Os assuntos que desenvolvemos como eixos principais – as cosmovisões, a educação, a ideia de narrativas, as identidades múltiplas e a ecologia – são exatamente esses assuntos que estão sendo ameaçados diariamente.
Exatamente. São por essas frentes que identificamos o retrocesso?
Tudo que a gente tem vivido, o retrocesso ou o controle pelo capital, o desejo de poder pelo poder, é tudo por aí. Nossos recursos do Brasil estão todos em jogo. A ecologia, a diversidade, a multiplicidade, a questão indígena… Mas a discussão não acabou. E é curioso, porque durante a Bienal, nesses três meses em que ela teve 900 mil visitantes, não tivemos nenhum problema desta ordem aqui em São Paulo. Mas tenho certeza de que se a gente abrisse hoje a mesma Bienal era o que aconteceria. Isso porque não foi nem um ano atrás.
Com relação à programação da Pinacoteca, é possível notar algumas linhas de força e um peso de questões candentes como as discussões de gênero e raça. ‘Radical Women’ se apresenta como um dos grandes destaques?
Acho importante entender que é uma exposição histórica, que está sendo organizada pelo Hammer Museum, de Los Angeles. São duas curadoras, a Cecilia Fajardo-Hill e a argentina Andrea Giunta, que há sete anos vem fazendo uma pesquisa, olhando para a arte desenvolvida por artistas mulheres dos anos 1960 até 1985. Um período claramente definido em que as artistas mulheres assumiram cada vez mais um protagonismo dentro da reinvenção da arte. O que é muito bonito nessa exposição é que ela mostra claramente que, embora muitas tenham sido ativistas solitárias, elas não estiveram sozinhas. Fazem parte de um grupo de pessoas, de uma pesquisa, bem maior do que uma conquista individual de cada uma delas.
Uma arte fora dos paradigmas?
Vejo que essa exposição tem um papel, por isso a gente está fazendo este esforço de trazê-la para cá, em sua única itinerância para América Latina. Podemos destacar três aspectos muito interessantes. Um deles é o fato de olhar para a arte feita por artistas mulheres neste período; outro é o destaque dado para as mídias e formas de expressão que foram inventadas por essas artistas, que hoje a gente entende como parte do nosso vocabulário, mas que na verdade desconhecemos a fonte. Por último, talvez esta seja uma das maiores exposições já feita sobre a arte latino-americana. Ela não olha a arte colombiana, a arte brasileira, a arte chilena, enfim. Ela realmente conta uma história de uma geração, dentro de um continente, um conjunto cultural, de uma forma extremamente ampla, algo que raramente se vê.
Você destacaria mais alguma exposição da programação?
Acho que o outro destaque será a próxima grande exposição, que abre depois do Di Cavalcanti: uma retrospectiva de Hilma af Klint, uma sueca, que se formou nos anos oitenta do século XIX, momento em que muitas coisas não são visíveis se tornaram visíveis, como o raio x, o radio, etc. Ela começou a se comunicar com energias, criou técnicas de desenho automático, para explorar esse campo não explorado ainda de uma forma muito inovadora. E, no início do século XX, começou a desenvolver uma arte “abstrata” extremamente revolucionária.
Precoce, não?
Super precoce. Antes de todo mundo. Foi uma das pioneiras. E mais surpreendente, trabalhou numa escala enorme. Há por exemplo um conjunto de dez grandes telas, pinturas que tem 3,50 por 2,40 metros de dimensão. Na história da arte, demorou ainda muito tempo até chegar nessa escala. E ela desenvolveu uma prática extremamente interessante, baseada numa exploração serial. É muito impressionante. Quando ela faleceu, em 1944, pediu em testamento que não mostrassem esse trabalho por mais vinte anos para ninguém. Ficou trancado até os anos 1960. A família quis doar esse trabalho todo para o Pontus Hultén, que era o diretor do Moderna Museet de Estocolmo. Ele não entendeu a história de uma mulher que fazia figura abstrata antes do Kandinsky e deixou passar. O material ficou meio desconhecido até os anos 1980. A partir daí algumas obras começam a circular, mas só em 2013 ocorre a primeira retrospectiva mais sistemática de sua obra, que foi feito pelo próprio Moderna Museet de Estocolmo. Tem alguns eixos na pesquisa dela, a ideia da serialidade, das cores, da geometria, a ideia de se entender cada vez o mundo de uma forma mais plural e cosmológica, que permite um diálogo extremamente interessante com a arte brasileira. Enfim, foi uma artista sobre quem sempre fiquei curioso e agora abriu-se essa possibilidade de trazê-la, com uma nova exposição, curada por nós.
Foi idealizada para a Pinacoteca?
É. Uma curadoria minha junto com diretor do Moderna Museet de Estocolmo e em colaboração com a Fundação Hilma af Klint. A gente fez uma nova curadoria para cá que busca esse diálogo com a história da arte brasileira. Apresenta por um lado a pesquisa da Hilma para um publico brasileiro e latino-americano pela primeira vez, mas também é uma tentativa de trazer um outro olhar para o trabalho dela onde talvez o diálogo com a arte brasileira possa acrescentar alguma coisa além da leitura dela própria.
Uma coisa alimenta a outra?
A história da arte não é só linear. E a arte brasileira pode abrir caminhos para entender o trabalho de uma Hilma embora ela não tenha diálogo biográfico nenhum com a América Latina ou o Brasil.