Detalhe da obra Sem “Sem Título”, da série “Torção” (2015), de Sonia Gomes
Detalhe da obra Sem “Sem Título”, da série “Torção” (2015), de Sonia Gomes, presente na 56ª Bienal de Veneza

Por Ligia Braslauskas

“Edição histórica”“genial”, “corajosa”. A curadora Solange Farkas não mede elogios para All the World’s Futures (Todos os Futuros do Mundo), a 56a edição da Bienal de Arte de Veneza, sob a direção do curador nigeriano Okwui Enwezor.

Não é para menos. Grande parte dos artistas e projetos apresentados por Okwui coincide com a pesquisa que Farkas desenvolve na Associação Cultural Videobrasil. Desde 1996, com a 11a edição do Festival Internacional de Arte Contemporânea SESC_Videobrasil, a criadora e diretora se dedica a apresentar obras produzidas fora do eixo tradicional formado pelos EUA e pela Europa. América do Sul, Oriente Médio e África, seus destinos constantes, e, segundo ela, “o mundo tem uma urgência desse reposicionamento geopolítico” e Enwezor “foi corajoso ao fazer isso justo na Bienal de Veneza”.

Na 19a edição do Festival, que começa no dia 5 de outubro, dois artistas coincidem com a mostra italiana: a brasileira Sonia Gomes, convidada especial, e o sueco radicado em São Paulo, Runo Lagomarsino. Ele apresenta, a propósito, a mesma obra em cartaz em Veneza, Seguindo a Luz do Sol eu Apenas Descobri a Causa, uma história verídica sobre a dificuldade de destino para um monumento em homenagem a Cristóvão Colombo.

Leia, a seguir, por que Farkas considera “histórica” a edição em cartaz da Bienal de Veneza.

ARTE!Brasileiros — A Bienal de Veneza tem uma maioria de artistas de regiões como África e Oriente Médio, até agora com pouca visibilidade, mas com as quais você trabalha há pelo menos duas décadas. Você esperava isso de Enwezor?
Solange Farkas – Eu esperava, claro. Se tem alguém que poderia reposicionar o cenário das artes com essa perspectiva de olhar o mundo com a sua abrangência, e não apenas pela ótica ocidental, da Europa e dos EUA, esse cara é Enwezor. Isso a gente sabe pela pesquisa dele, que já foi vista na Documenta de Kassel (2002), na Bienal de Joanesburgo (1997), na Bienal de Gwanjiu (2008). Afinal, ele vem desse lugar do mundo, é um nigeriano que transita muito na África e nesses outros lugares. O fato de ele já ter realizado as mostras mais importantes em artes visuais fez com que essa fosse uma síntese da pesquisa dele e será seu legado, porque ele assumiu que não vai mais fazer grandes mostras. Agora, o mundo tem uma urgência desse reposicionamento geopolítico e isso está ocorrendo de forma evidente, então ele foi corajoso ao fazer isso justo na Bienal de Veneza, que é das mais tradicionais.

Mas ele também aborda a história da própria Bienal na mostra…
Isso é genial. Por ser a Bienal mais antiga, ela atravessou todos os eventos importantes do século XX. Eu não sabia, por exemplo, que a Bienal se manifestou contra o Golpe do Pinochet, no Chile, em 1974, como ele aborda na exposição atual. De certa forma, com isso, Veneza se redimiu por ter passado por duas guerras mundiais sem tomar posição, diferentemente da Documenta de Kassel, que nasce com uma perspectiva de revalorizar a arte moderna após o colapso do nazismo. Isso se insere ainda dentro dessas outras narrativas que o Enwezor apresenta. Nós vivemos em um momento histórico crítico, como ele mesmo fala, que é de crise financeira e social. Usar O Capital como fio condutor da Bienal é, sem dúvida, de uma coragem extraordinária e não foi aleatório. Acho que essa Bienal tem várias questões importantes e uma delas é mostrar o mundo nessa dimensão crítica, dando voz a artistas que tratam disso. Mas também não se trata de uma oposição ao mainstream, porque muitos artistas desse circuito participam com obras muito boas. Acho importante também ele ter encomendado trabalhos, há muita obra produzida para a Bienal, o que é sensacional.

Mas a recepção a essa Bienal no circuito das artes é bem negativa. Você acha que é preconceito?
Tenho certeza de que é preconceito. É aquela coisa simplista de quem olha e não sabe lidar porque não tem repertório, e a reação é negativa. Isso é tosco. Eu nunca vi uma Bienal com tanta gente desconhecida do circuito, mas que me é familiar porque eu transito na África e no Oriente Médio, por exemplo. São artistas que conheço em seu lugar de origem e nunca os vi em Veneza e nem vi Veneza com uma vibração tão incrível com as pessoas percebendo a importância desse gesto. E o que me chama a atenção é que muitos desses artistas abordam o silêncio em seus trabalhos, como a forma de comentar a rejeição.

Obra de Steve McQueen na Bienal de Veneza. Foto: Divulgação

Sonia Gomes se insere nesse tipo de pensamento?
Totalmente. Se você pensar quem é ela no contexto da arte brasileira, que ninguém conhece, que é sem voz, e que as pessoas estão começando a descobrir. Eu me surpreendi com o trabalho dela lá, esperava algo maior, e ela fez algo discreto, que foi entrando nas frestas das colunas, onde ela achava espaço, contaminando aquele espaço de forma linda e com uma organicidade impressionante. Tem muito trabalho assim, em especial o da senegalesa Fatou Kandé Senghor. É um documentário, até bastante convencional, de uma artesã que mora em aldeia e esculpe corpos de mulher. O nome dela é Seni Awa Camara. Ver isso em Veneza, em um local por onde todo mundo tem de passar, é incrível. Vi o filme inteiro e quase chorei. É dar voz para aquele lugar, é um deslocamento de tempo muito grande. Com isso, ele chancela algo que ainda não foi colonizado.

É interessante ver como o Enwezor não só alterou quem costuma estar ali representado, como de que forma apresentar, mudando radicalmente tanto o Pavilhão Central como o Arsenale.
Totalmente. Eu não me reconhecia naquele lugar. Frequento a Bienal há décadas e desta vez me perdi. É genial, e creio ser uma conquista ver essas mudanças.

No catálogo, ele afirma que a arte não precisa ser política, mas uma exposição nesse momento em Veneza precisa.
É claro. É óbvio. Existe uma urgência e os artistas vivem esse contexto e os trabalhos deles são contaminados por esse contexto, não tem como não chegar ali. Mesmo que não seja um trabalho claramente militante, e muitos não são, o mundo está de ponta-cabeça, é impossível não comentar.

O trabalho do Steve McQueen vai nesse sentido, não?
Sim. Ele é lindo e poético. Para mim, é o trabalho mais lindo da Bienal. É um susto. Eu conhecia uma das partes, o menino balançando na ponta do barco, que vi em Londres. Mas a segunda parte, sobre a morte dele, quando a gente vê a sepultura sendo construída, é triste demais. Todo o ritual, não tem palavras. E tem muitos trabalhos ali também que são claramente militantes, como o Invisible Borders, um coletivo de fotógrafos, escritores e cineastas da Nigéria, altamente articulados, que apresentaram o The Trans-African Project, e que pouquíssima gente conhece. Eles são extremamente importantes, para mim um dos trabalhos de ponta da arte contemporânea. E outro coletivo, o Abounaddara, que foi o próprio Enwezor que me apresentou anos atrás, de cineastas na Síria, anônimos por questão de segurança, senão eles morrem. Eles dão câmeras para as pessoas e registram todo esse massacre que acontece na Síria, é bem um trabalho de mídia tática. São curtas disponíveis na rede e que documentam o que acontece hoje e as vítimas da guerra. Durante a Bienal, os filmes são exibidos na Arena. Eles inventaram um novo gênero no cinema que se chama filme de urgência.

Tem um diálogo bem grande com a Bienal de São Paulo passada, não é?
Totalmente. O Charles Esche tem essa pesquisa, é verdade. Mas pela importância da Bienal de Veneza e por ela nunca ter transgredido de fato, esta é uma edição histórica.


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