Destruição da Amazônia, guerra contra as artes. Apesar do clima de catástrofe, o curador João Fernandes chega otimista. “O Brasil no meio de toda dimensão trágica de sua história, sempre conseguiu criar formas de superar esses traumas”, observa de sua nova sala, na avenida Paulista, exatamente do outro lado da sede do Instituto Moreira Salles.
Respeitado no circuito internacional, Fernandes esteve à frente da Fundação Serralves, no Porto, entre 1996 e 2012, hoje uma das mais renomadas em arte contemporânea, e atuou seis anos como diretor artístico do Reina Sofia, em Madri, instituição essencial para a criação de novas narrativas na história da arte.
Conhecedor da arte brasileira em profundidade, visitante regular do país desde 1998, quando indicou a representação portuguesa na bienal que tratou da Antropofagia, Fernandes conta seus novos planos em sua nova função:
ARTE!Brasileiros – Como é chegar em um momento tão dramático no Brasil, que até a noite chega no meio da tarde?
João Fernandes – Eu fiquei admirado, não sabia o que estava passando, imaginei que no inverno São Paulo escurece às 15h da tarde (risos), como ocorre na Alemanha.
Pois é, mas chegar em meio a tudo isso não carrega uma certa urgência, apesar de o IMS ter tido mostras muito relevantes sobre a história e o momento brasileiro como Corpo a Corpo, Conflitos ou mesmo da Claudia Andujar, A luta Yanomami, nos últimos dois anos?
Eu vim para o Brasil porque achei que era importante estar no Brasil. Reconheço que o convite me surpreendeu, estava longe de minha expectativa sair do Reina Sofia tão cedo. Mas quando João [Moreira Salles] e Flávio [Pinheiro] me pediram para pensar na possibilidade de assumir a diretoria artística do instituto, há um ano, confesso que fiquei muito fascinado. Isso porque conhecia uma parte dos acervos do instituto e da sua programação e, ao mesmo tempo, acho que o instituto tem uma condição ideal em sua autonomia com seus acervos e suas práticas para poder trabalhar no Brasil. Sei que não é fácil construir uma instituição no Brasil, mas tampouco é em Portugal, meu país. O museu que trabalhei em Portugal foi o primeiro museu de arte contemporânea do país e foi criado só no final do século 20. Apesar de aqui os museus terem começado antes, sei que a institucionalidade não é fácil.
Por tudo isso, acho que o instituto é uma das instituições mais possíveis para se relacionar com a memória e o presente, porque a memória não pode ser indistinta do presente, como o presente não pode ser indistinto da memória. Isso foi o que me levou ao Reina Sofia, pois me interessava muito como o Manolo [Manuel Borja-Villel] constrói um ponto de vista sobre a história a partir da história da arte e a história da arte a partir da história, o que faz o Guernica não ser apenas uma obra-prima da história da arte, mas também um documento importante de um momento de conflito que revela uma história a partir do ponto de vista dos vencidos e não dos vencedores, que é quem em geral condiciona as narrativas históricas nos museus e nas instituições. Então, trabalhar com os acervos do Moreira Salles é poder trabalhar com o melhor de uma cultura que sempre me fascinou, e na língua que eu falo.
O que também me interessou no convite para meu trabalho curatorial foi não ficar confinado em um tipo de especialização, de uma arte que se constitui por certos estereótipos para se chamar de arte contemporânea, o que é paradoxal com a história da arte no século 20, que sempre teve formas híbridas. Então poder trabalhar com acervos e uma programação que permite cruzar literatura, fotografia, artes visuais, cinema é para mim um desafio fascinante.
Mas e chegar nesse momento tão difícil?
Aí confesso que acho que o Brasil nunca vai deixar morrer a esperança. O país já passou por situações muito difíceis, como todos os países que viveram o mundo colonial. No caso do Brasil, essa experiência bárbara e atroz, que perdura para além do próprio período da escravatura, deixa feridas abertas pelas marcas, traumas e cicatrizes. Mas o Brasil, no meio de toda dimensão trágica de sua história, sempre conseguiu criar formas de superar esses traumas.
O Hélio Oiticica criou a famosa frase…
Da adversidade viemos! E na adversidade encontrar a alegria em meia a tristeza mais profunda. O Brasil sobreviveu a ditaduras terríveis, houve momentos em que a condição humana foi fragilizada em termos das condições políticas e econômicas, das marcas do colonialismo. Em meio a tudo isso, o Brasil constrói uma cultura inacreditável. E me interessa particularmente a forma como a cultura brasileira subverte a distinção entre cultura erudita e popular. Isso acontece na música, nas artes visuais, no cinema. Isso sempre me fascinou muito.
Quando comecei a trabalhar com arte isso se tornou muito claro, porque não havia textos brasileiros lidos em Portugal, seja de Mário Pedrosa, seja de Ferreira Gullar ou mesmo de Hélio Oiticica, nenhum deles era conhecido. Quando descobri que o MoMA pensava em publicar os textos do Mário Pedrosa, disse para eles que quando esses textos fossem traduzidos para inglês os cânones da História da Arte iriam mudar. E de fato, eles traduziram e passaram a dar importância a ele. Precisam ainda descobrir como Walter Zanini constrói um conceito de museu, que é outro capítulo na história dos museus no século 20.
Há tanta coisa por aqui que abre caminhos, que critica os caminhos dominantes nos centros clássicos da construção da modernidade, das vanguardas, da geopolítica do mundo, que fazem a minha presença aqui um grande desafio e uma grande possibilidade de trabalho. Por isso tudo, confesso que nada abala minha crença que o Brasil irá sobreviver e creio que a cultura tem um papel nisso.
E essa é uma das razões que trabalho com arte, que é essa coisa maravilhosa de ninguém pensar ou sentir uma obra de arte da mesma maneira. Todos nós temos impressões distintas diante de uma sinfonia, ninguém vê um quadro da mesma maneira e quando vê da segunda vez já vê de forma diferente. E essa característica da arte, que permite radicalizar sem ao mesmo tempo fragilizar o sentimento de comunidade, é o que eu acredito ser o papel dos museus, das instituições culturais, das salas de concerto e teatro, ou mesmo da rua. A experiência da diferença, de estar juntos sendo diferentes, é muito importante. E a arte é das atividades humanas que estimulam isso, que ensina a construir comunidade e estar juntos a partir das diferenças de sentir e de pensar, mesmo em um país tão crispado como o Brasil é. Afinal, a estruturação desse país se deu com tanto ódio, que se manifestou em formas de ameaça à condição humana — a escravatura tem papel central nisso, é dos holocaustos mais hediondos da história da humanidade. Tudo isso se manifesta ainda, infelizmente, presente na falta de respeito às questões raciais, às culturas ancestrais, à natureza. Mas por isso mesmo a arte e a cultura têm sobrevivido e criado novas formas, erudita ou popular, que fazem do Brasil uma situação única, isso afirmo talvez por ser minha língua, mas tudo isso se tornou um convite irrecusável.
De fato, apesar de tudo que está ocorrendo há a percepção de que as instituições culturais têm tido um crescimento de público.
Eu cheguei há uma semana e vi acontecimentos maravilhosos. A energia que existe nesse momento no Brasil é muito única. O Panorama da Arte Brasileira é uma exposição notável, que foge aos estereótipos da arte contemporânea que se vê nas bienais de arte, não falo aqui de nenhuma em específico, que começam a parecer feiras de arte. Já no Panorama, encontra-se uma brasilidade que não é nacionalista, mas de conexão com as culturas populares, com os temas do presente, com culturas vistas como marginais, e tudo isso conflui de maneira muito original. Tive ainda a felicidade de ver uma mostra do Flávio de Carvalho onde o Teatro Oficina apresentou O Bailado do Deus Morto, feita na década de 1930, um texto que liga diretamente uma experiência pós-colonial com uma cultura universal, de matriz neoclássica e europeia – aquelas máscaras são gregas, de certa forma, conseguem ser gregas e brasileiras. Também assisti à estreia do Bacurau, do Kleber Mendonça, que é um momento único na história do cinema: além de ser o western mais antifascista já feito, é também a possibilidade de um western popular e que reinventa um gênero, sem cair em estereótipos. Tudo isso em uma semana de Brasil.
E como você pretende trabalhar no Instituto Moreira Salles?
Confesso que por um lado vou aprender muito mais do que até agora conheço, em relação a tudo que aconteceu na arte e na cultura brasileira, e quero aprofundar toda uma série de possibilidades que os acervos do instituto oferecem e mesmo o cruzamento destas áreas, que é uma coisa que sempre gostei de fazer, aproximar artes performativas de artes visuais, da literatura. Há sincronias no tempo de obras de Lygia Clark com Clarice Lispector, e muitas interrogações podem surgir dessas sincronias, desses universos paralelos. Mas também tenho consciência que o Brasil é tão longe de outros lugares do mundo e muita coisa não passou por aqui e pode ser conhecida. Ao mesmo tempo acho importante que esses acervos magníficos do instituto e sua relação com a memória e o conceito de documento sejam levados ao mundo.
Isso é uma missão, eles pediram que você trabalhasse esses acervos no exterior?
Não. Mas conhecendo esses acervos e como são desconhecidos no mundo, não há como não pensar nessa urgência. É preciso conhecer as coisas maravilhosas que existem aqui, até porque o Brasil tem sido visto em muitos estereótipos que foram criados. Se eu puder contribuir para isso é importante. É fantástico compreender como Claudia Andujar, que nem nasceu aqui mas ela chega aqui e percebe que uma das riquezas do Brasil, se encontra nesse tesouro maravilhoso que são as culturas indígenas. E ela vai lá, vive com eles e passa a ser como uma embaixadora. E ela ainda é pouco conhecida. Semelhante a ela tem o Lothar Baumgarten, que a partir da Alemanha e de Humboldt vem também para o Brasil e uma de suas primeiras obras na Europa é Eldorado, prefiro estar lá do que no norte da Westphalia, que é uma frase do Voltaire, até ele já tinha essa consciência. Enfim, estes dois nomes mostram como há uma universalidade no Brasil que é muito fascinante e pode se desdobrar em programações, em momentos.
Então você pretende mostrar o Lothar? Dá para falar sobre algo do que você pretende trazer para a programação?
Eu não estou ainda em condições de apresentar um programa, acabei de chegar, estou a conversar com as equipes. Primeiro quero ouvir muito. E fico feliz em chegar e ter uma ótima programação definida para o primeiro ano, é uma felicidade chegar e ter uma mostra abrindo do Harun Farocki, com quem nunca trabalhei, mas respeito muito. É uma das obras que mais motivam o pensamento entre cinema e sociedade, história política e novas formas de narração.
Minha primeira atitude, então, é conhecer como trabalha o instituto, como trabalham suas equipes, seus programadores e, pouco a pouco, constituir com eles uma identidade na programação.
Acho que uma instituição tem que ter uma identidade na programação, o instituto tem possibilidades únicas para a interação dos seus arquivos e por uma ação muito particular na integração com o conceito de memória. Quem tem arquivos como o instituto tem uma obrigação, que é de propor preservar uma memória, mas preservar memória é também construir um ponto de vista sobre essa memória e um ponto de vista que se ponha em discussão. Memória é sempre algo coletivo, algo para ser discutido, porque quem trabalha com memória trabalha com o presente. Então, voltando à sua questão inicial, se o instituto fez exposições como Corpo a Corpo e Conflitos, não há como não continuar fazendo exposições assim.