Imagem colorida. Alessandra Munduruku, uma das principais lideranças indígenas do Brasil, durante a II Marcha das Mulheres Indígenas: Reflorestamentos, Corpos e Corações para a cura da terra. Brasília, 2021. Foto: Edgar Kanaykõ Xakriabá
Alessandra Munduruku, uma das principais lideranças indígenas do Brasil, durante a II Marcha das Mulheres Indígenas: Reflorestamentos, Corpos e Corações para a Cura da Terra em 2021. Foto: Edgar Kanaykõ Xakriabá

O Museu de Arte de São Paulo (Masp) chegou finalmente a um acordo satisfatório com as curadoras do núcleo Retomadas, Sandra Benites e Clarissa Diniz (que montavam para a instituição uma mostra que faria parte da exposição coletiva Histórias Brasileiras, inaugurada em 1º de julho). Em maio, Sandra e Clarissa foram surpreendidas pela insólita disposição do Masp de eliminar um recorte de sua seleção artística, recusaram seguir sem o material por julgarem que estavam sendo objeto de censura e se demitiram no dia 17 de maio.

Para reverter a situação, o Masp concordou no seguinte: a exibição voltará a ter a presença de todos os fotógrafos que tinham sido anteriormente vetados na exposição, e cujas obras retratam o Movimento Sem Terra (eram seis fotografias do MST de autoria de André Vilaron, Edgar Kanaykõ Xakriabá e João Zinclar). Esses registros, vetados anteriormente, terão agora ampliações distribuídas a todo o público (em formato de pôsteres), e a exposição ampliará a gratuidade de acesso ao museu e às suas atividades também às quartas-feiras (tradicionalmente, a entrada grátis é somente às terças). A instituição também reconhece a propriedade intelectual do trabalho das curadoras e dará ao argumento curatorial o caráter de copyleft.

O Masp aceitou ainda realizar um seminário online tratando do processo de produção da mostra, com convidados comissionados, com o intuito de debater os desafios e desdobramentos da proposta curatorial, além de produzir (por intermédio da editora Expressão Popular, do MST) uma revista que trate dos processos das lutas sociais. Na abertura da exposição, no dia 26 de agosto, o Movimento Sem Terra (MST) e movimentos sociais e indígenas convocarão um ato cultural que será abrigado pela exposição, e o museu se comprometeu também em realizar novas edições do núcleo Retomadas em escolas e espaços de formação do movimento de luta pela terra.

O museu ainda promoverá a readmissão da antropóloga Sandra Benites como curadora adjunta, voltando a ter em seu corpo de curadores a primeira mulher indígena a integrar o bureau do Masp. Sandra e Clarissa divulgaram uma carta aberta como forma de reagir a um aceno de reconsideração do Masp, feito em nota oficial uma semana antes. No dia 20 de maio, a instituição se manifestou publicamente anunciando “um novo posicionamento” sobre a questão, alegando que buscava aprender com o episódio. Havia dolorosas arestas a serem aparadas – o museu atribuiu o cancelamento à negligência das duas profissionais, e elas consideraram isso ultrajante.

“A instituição lamenta publicamente o cancelamento do núcleo, tão importante para a  exposição, e a saída das curadoras do projeto”, dizia a nota. “Pretendendo avançar para que episódios semelhantes não se repitam no futuro, estamos abertos a ouvir Benites e Diniz, com a finalidade de aprendermos com essa experiência e aprimorarmos processos e modelos de trabalho”.

Real envolvimento

Sandra e Clarissa se dispuseram ao diálogo, mas estabeleceram seis principais condições para que pudessem regressar ao projeto. Essas condições, agora aceitas parcialmente pelo Masp, buscam ilustrar a possibilidade de criar um novo patamar de relacionamento das instituições museológicas com a sociedade. Em vez de os movimentos afirmativos e sociais se prestarem a lustrar o prestígio dos museus (que precisam dessa ressonância), é proposta agora uma relação de real envolvimento nos diagnósticos e movimentos que a arte promove em suas exposições. O museu que abrigava circunstancialmente passa a ser também o museu que participa, que ativa, que se envolve, que vai além das representações e assume compromissos. Algo que chacoalha a conveniência das antigas neutralidades.

Oficialmente, após essas concessões de parte a parte, o Masp confirmou então em nota que o núcleo Retomadas voltará a fazer parte da exposição e que a mostra está confirmada para o período de 26 de agosto a 30 de outubro. A experiência dialética do Masp, embora tenha se imposto à revelia da vontade do museu, é um desafio que se abre para toda a museologia na nova ordem internacional. Retomadas faz parte da série Histórias, que incluiu Histórias da Sexualidade (2017), Histórias Afro-atlânticas (2018), Histórias Feministas (2019), entre outras. Um museu “diverso, inclusivo e plural”, que busca “estabelecer diálogos críticos e criativos entre o passado e o presente por meio das artes visuais”, como se apresenta a série, não pode lançar mão de subterfúgios que mascarem atitudes de censura e genuflexões para com o poder político instituído.

Essa encruzilhada está sendo encarada em todo o Planeta nesse momento. A incorporação da crítica anticolonial e antirracista, a amplificação das questões de gênero, o debate sobre a manutenção dos sistemas de poder na sociedade, a urgência de se transmutar forma em processo. É um desafio ainda maior na atual conjuntura de regressão democrática no Brasil, país no qual o presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) publica uma portaria aprovando o regimento interno dos museus do sistema em 30 de março e, 47 dias depois, revoga o texto que o próprio governo tinha aprovado sem maiores explicações.

CIMAM 2022

É por não fugir do debate contemporâneo que o tema do congresso do International Committee for Museums and Collections of Modern Art, o CIMAM 2022 (conferência anual de museus do mundo todo, que celebra 60 anos de realização), é justamente o seguinte: O Museu Atento – Práticas Permeáveis para um Terreno Comum. Ele terá 12 conferencistas do mundo todo, incluindo diretores de instituições como o Reina Sofía, de Madri, e será realizado na Espanha entre 11 e 13 de novembro próximo, tratando da proposição de diferentes modelos que podem oferecer uma nova visão de governança, narrativas, discurso de caráter decolonial e uma visão sobre o museu global face a novas narrativas e novos modelos institucionais, além do futuro sustentável.

O CIMAM abordará temas que dizem respeito a toda a movimentação da sociedade contemporânea. Mudando a Partir de Dentro: Como Nós Devemos Governar a Nós Mesmos, com Mami Kataoka, presidente do CIMAM, é a conferência que abre o primeiro dia de debates. Outra frente de reflexão é o tema Aprendendo com a Comunidade: Ações Coletivas em Face da Emergência. Destravando a História e as Novas Narrativas, com a filósofa brasileira Denise Ferreira da Silva, pesquisadora do Social Justice Institute da University of British Columbia de Vancouver, Canadá (com outras debatedoras no painel), é o tema seguinte.

Denise é uma das principais pensadoras a abordar com maior energia o tema mais candente da atualidade: “Para além da crítica pós-colonial como um exercício intelectual, a arte do confronto é uma intervenção anticolonial precisamente porque transforma o espaço entre o artista e o público numa trincheira”, ela escreveu, no texto Reading Art as Confrontation. “Ao encenar um confronto, a arte anticolonial forja uma experiência estética que expõe a própria violência que é o pensamento moderno precisamente por causa da in/diferença entre o palco e o museu como espaços de exibição”.


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