PIPA 2024
Nara Guichon, Aline Motta, enorê, Aislan Pankararu: Abertura das exposições PIPA 2024, Foto: Fabio Souza

Os artistas vencedores do Prêmio PIPA 2024 são Aislan Pankararu, Aline Motta, enorê e Nara Guichon. Eles fazem parte de exposição no Terreiro do Paço Imperial, no centro do Rio de Janeiro, que ficará em cartaz até 20 de outubro. Na sala ao lado, uma mostra relembra os 15 anos do PIPA com obras de parte dos artistas premiados em outros anos, como Berna Reale, Paulo Nazareth, Renata Lucas, Arjan Martins, Éder Oliveira e Denilson Baniwa.

O Instituto Pipa foi criado por Lucrécia e Roberto Vinháes, ela com background de arquiteta de interiores e produtora de exposições, ele um investidor, além de patronos das artes. O curador do instituto é Luiz Camillo Osório, ex-curador do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, professor e atual diretor do departamento de filosofia da PUC Rio. Os premiados são escolhidos por um júri do instituto depois de passarem por indicação de um comitê de profissionais, renovado a cada ano. O prêmio serve também para orientar a formação da coleção de arte do instituto, com negociações de aquisição que podem acontecer no processo. 

A cada ano, quatro artistas têm sido escolhidos pelo PIPA e recebem os holofotes. Este ano, ganham R$ 15 mil em doação cada um, verba que ajuda a custear obra e transporte para sua participação em exposição coletiva. Se o valor monetário parece pequeno, é bom lembrar a dificuldade de sustentação e financiamento que os artistas visuais enfrentam num país como o Brasil, que mantém na miséria suas instituições educacionais e culturais, inclusive seus museus, enquanto a indústria de apostas (bets, no anglicismo habitual) fatura R$ 68,2 bilhões em doze meses. 

Sobre os premiados deste ano, é preciso mencionar ancestralidades e contextos pois são eles que alimentam a sua criação artística.

Aislan Pankararu é um indígena do sertão semi-árido pernambucano, nascido em Petrolândia em 1990. Sua aldeia mãe é o Brejo dos Padres. Durante o processo de colonização e aculturação, seu povo perdeu a língua original, mas manteve a espiritualidade, o culto aos encantados, a pintura corporal em argila branca e certos rituais. Esse povo carrega a história do deslocamento forçado às margens do rio São Francisco, do alagamento para  construção de hidrelétrica e da destruição da cachoeira onde se relacionava com os ancestrais.

Aos 17 anos Aislan saiu da casa dos pais, fez vestibular e foi estudar medicina em Brasília. Em seus depoimentos, conta que ali percebeu o racismo estrutural nos questionamentos sobre ser indígena, o lugar do indígena como objeto de estudo na universidade, mas nem sempre bem-vindo como presença. Sentiu falta do bioma da caatinga. Na república em que vivia, começou a aliviar as dores e nostalgias de forma ritualística, pintando com escova de dente e guache em papel kraft. Uma forma de se reconectar com seu povo, cultura e geografia.

Seu trabalho, diz ele, é exaltar o índio sertanejo, de alta estatura, que se pinta com um elemento sagrado que é a argila branca retirada de local específico. Em suas pinturas aparecem elementos da cosmogonia pankararu, seus praiás (máscaras rituais), as entidades, os mensageiros entre a Terra e o céu, os ritos festivos, o mandacaru, o flechamento do umbu, a caatinga, assim como aparecem referências ao mundo da biologia e da genética, as células vivas e que respiram. 

Enorê nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1992, é graduado em pintura pela Escola de Belas Artes da UFRJ mas vive e trabalha em Londres. Ele transita entre mídias digitais e processos físicos. Faz impressão cerâmica 3D mas considera seu trabalho interdisciplinar, envolvendo desenho e pintura, às vezes vídeo e projeção, além de scanner e da impressora de onde saem cabeças, rostos e mãos. 

Em seu depoimento para o PIPA ele fala sobre desafiar ou cruzar diferentes temporalidades, das coisas que não se dissolvem, não se destróem, “ficam nessa recursividade da existência”. Como funcionariam esses fantasmas digitais, sair da tela e voltar, serem construídos, dissolver de novo e serem construídos novamente. Embora esteja falando do próprio trabalho, o artista parece falar também da vida na era digital.

Suas obras recentes trazem títulos como Glitch 3 (rosto destruído); frio ao toque; ao perder seu corpo; dissolução; são todos você (aparição); Tudo que consigo segurar (fragmentos). Ele escreve muitos títulos com letra minúscula, e é também assim que grafa seu nome. 

A gaúcha Nara Guichon, nascida em Santa Maria, em 1955, mora no sul da ilha em Florianópolis desde os anos 1980, e fez uma vida dedicada ao tricô, crochê, bordado e tecelagem. Recebeu prêmios de design de instituições como o Museu da Casa Brasileira. Nara também é uma conhecida ambientalista, atuou na recuperação da Mata Atlântica e se dedica à coleta e ao reuso de redes de pesca de poliamida (petróleo) abandonadas no mar. Essas redes respondem por metade da poluição mundial dos oceanos.

Seu impressionante trabalho artístico tem sido desenvolvido, em suas palavras, com “o material que está aí à deriva”. Ela reutiliza as redes de pesca com novas oxidações e pigmentações naturais, as tricota, articula com arames, sacos plásticos e tecidos industriais refugados. Sua obra escultórica tem formas orgânicas que evocam a natureza do planeta, a vida vegetal, animal e mais especificamente a paisagem do fundo do mar. 

“Minha necessidade é trabalhar pedindo socorro pelo planeta. A minha arte é portentosa porque o lixo oceânico é portentoso”, explica.

Aline Motta nasceu em Niterói em 1974, estudou cinema e trabalhou como continuísta até abraçar a carreira artística e se mudar para São Paulo. Ela vem de uma família inter-racial e se dedica a extensas pesquisas iconográficas e documentais antes de criar suas obras. Encontrou indícios de que uma tataravó nasceu por volta de 1855 numa fazenda em Vassouras, epicentro do escravismo brasileiro naquela época. 

Assim como Aislan Pankararu, Aline traz sua ancestralidade à obra. “Muito do meu trabalho é sobre minha própria família, especialmente sobre a minha avó”, gosta de dizer. Para ela, “linhagem é linguagem”. 

Na exposição do PIPA, Aline Motta mostra Corpo Celeste III, de 2020, uma instalação em que são projetados no chão desenhos e provérbios das línguas africanas kikongo e umbundu, trazidas ao Brasil e outros países americanos com os escravizados vindos da região do Congo e de Angola.

A principal referência dessa obra é o chamado cosmograma bakongo e os diagramas conhecidos como pontos riscados, usados na umbanda para invocar entidades espirituais. Bakongo significa literalmente “povos kongo”. Sua língua é o kikongo. O cosmograma bakongo é uma espécie de mandala também conhecida como “diekenga”, que representa simbolicamente os grandes ciclos do sol, da vida, do universo e do tempo. Uma cruz divide o círculo em quatro etapas ou tempos. Uma linha horizontal, também chamada kalunga, representa o mar ou a separação dos mundos dos vivos e dos mortos.

Na animação de Aline Motta, aparecem o sol, a lua, estrelas, cruzes, caramujo, cobra coral, jabuti, tatu, embarcação e provérbios. Entre os provérbios estão: “O fogo não é mais forte que a água, a panela é que põe barreira”; “Princípios antigos, para compreender os novos”: “Luar claro não é sol”. A obra foi criada em colaboração com o percussionista Rafael Galante e pertence à Coleção Pinacoteca de São Paulo.

É curioso que essa exposição esteja sendo exibida no Terreiro do Paço, sala dos empregados do edifício inaugurado em 1743 como Casa dos Governadores, transformado em casa de despacho do Vice-Reino do Brasil em 1763, quando a sede do Vice-Reino foi transferida de Salvador para o Rio de Janeiro, e promovido a Paço Real em 1808, com a chegada da família real portuguesa. Durante o reinado de Pedro II o terreiro dos empregados foi transformado em oficinas artísticas para o alemão Ferdinand Pettrich e o francês François-Auguste Biard, respectivamente o autor da primeira estátua em mármore feita no Brasil (Imperador em trajes majestáticos) e o pintor de vários retratos da família imperial.

O edifício foi sendo ressignificado ao longo dos anos, sediando a Casa da Moeda, o Real Armazém, registrando fatos históricos como coroações, o Dia do Fico, a Abolição da Escravidão e a Proclamação da Independência do Brasil, até ser tombado pelo Patrimônio Histórico em 1938 e se tornar um centro cultural em 1985 vinculado ao IPHAN. Chegou o dia em que não é mais a história dos poderosos a passar-se ali, mas sim a imaginação e as visadas contemporâneas de artistas, eventualmente a revisitar fatos do passado, agruras do presente e a escancarar a diversidade cultural que o processo de dominação e exploração procurou e ainda procura apagar e massacrar. 


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