Vista da exposição “Existências paralelas - acervo em (des)construção”

Efrain Almeida (1964 – 2024), morto prematuramente no ano passado, é um dos nomes mais reconhecidos da arte contemporânea brasileira. Cearense do sertão do Canindé, ele não consta no acervo da Pinacoteca do Ceará, inaugurada há três anos a partir da reunião de diversas coleções públicas.

A ausência de Efrain na Pinacoteca acabou gerando uma homenagem especial na mostra “Existências paralelas – acervo em (des)construção”, concebida para repensar um acervo público. Com 484 obras de 63 artistas do Ceará de projeção local e nacional, populares e contemporâneos, históricos e desconhecidos, a exposição se divide em cinco módulos.
Um deles, Formas votivas e celebrações, revisita a poética de Efrain, marcada por traços autobiográficos e atravessada por elementos da cultura nordestina, para produzir um intenso diálogo com outras produções manuais, caso de Maria de Lourdes Cândido Monteiro (1939-2021), que em Juazeiro do Norte se dedicou a trabalhar com o barro, conquistando o título de Mestra da Cultura, em 2004, compartilhado com filhas e netas.

As várias obras de Efrain, que divide ainda o módulo com outro contemporâneo de renome, como é o caso de José Leonilson (1957 – 1993), em diálogo com artistas em geral considerados “populares”, como Maria de Lourdes e Nice Firmeza, apontam para como a mostra evita categorias estéticas redutoras para pensar o que cabe em um museu público e repropõe a constituição de um acervo público a partir de uma organização curatorial bastante disruptiva.

Existências paralelas foi concebida por um trio curatorial composto por Lisette Lagnado, José Eduardo Ferreira Santos (Acervo da Lage – Bahia) e Yuri Firmeza, que por sua vez tem a curadoria compartilhada com pesquisadores e lideranças de territórios e comunidades de diferentes regiões do Ceará: Débora Soares e Ismael Gutemberg, do Núcleo de Patrimônio Cultural do Moura Brasil (Nupac); Diêgo di Paula, Acervo Mucuripe; Dona Toinha, Quilombo Água Preta, em Tururu; Paula Machado, Minimuseu Firmeza, no bairro Mondubim; e Tercio Araripe, Grupo Uirapuru Orquestra de Barro, de Moita Redonda.
A partir dessas conjunções, a mostra repensa o acervo da Pinacoteca em uma organização “pela aproximação do ordinário sublime que sempre esteve à margem e, ao mesmo tempo, sempre foi resistente e político, mantendo viva a memória e as aspirações de um povo e seu território”, diz Rian Fontenele, diretor-geral da instituição.

O espaço arquitetônico, um dos pontos altos da exposição, foi desenhado junto ao arquiteto Tiago Guimarães, com inspiração no mobiliário que costuma compor uma reserva técnica de museu, como mapotecas e estantes. Os painéis suspensos, erguidos em linhas paralelas, que fazem uma evocação ao título da exposição e estão alocados no centro do espaço, são de um material verde translúcido semelhante a pastas de arquivo, que dão leveza e vitalidade ao conjunto. Já nas paredes brancas laterais, as obras estão dispostas em três diferentes alturas, o que remete ao sistema de classificação de uma reserva técnica.

Um dos princípios curatoriais foi evitar o cânone, partindo dos nomes já reconhecidos, em busca de lacunas, especialmente de mulheres, que sabidamente são minoria em todos os museus de arte, seja no Ceará, no resto do país ou mesmo do mundo. Além do mais, os artistas que representam o cânone no Ceará, como Antonio Bandeira, Aldemir Martins, Chico da Silva e José Leonilson já foram tematizados em grandes mostras nestes três anos da Pinacoteca.

Com isso, umas das primeiras presenças fortes é de Telma Saraiva e suas fotopinturas. Aliás, ela está em cartaz atualmente no Museu de Arte do Rio, em uma individual acachapante, com curadoria de Bitu Cassundé. Suas imagens reencenam até ícones hollywoodianos, muitas delas com seus filhos.

Telma está no módulo Modos de produção e circulação, que aborda um circuito experimental e, ao mesmo tempo, com muita penetração no Ceará, especialmente na região do Cariri. Lá a xilografia possui uma longa tradição, “seja por meio do Boletim Caricata, no início do século 20, seja por meio de José Bernardo da Silva e da Tipografia São Francisco, predecessora da Lira Nordestina”, afirma Yuri Firmeza em um dos textos da mostra.

Memórias territoriais

A pesquisa para a exposição, inaugurada em maio passado, teve início em novembro de 2023 e contou com visitas a diferentes regiões, e vários encontros foram promovidos com o objetivo de conhecer um pouco da diversidade de iniciativas de “pinacotecas informais”, como diz José Eduardo Ferreira Santos. Para ele, “estabelecer uma relação entre arte e território é premissa incontornável quando se quer conferir rastros e lastros a movimentos historicamente importantes na formação sociocultural do Ceará”.
Memórias territoriais, assim, é um módulo que traz o diálogo com o Acervo Cultural de Água Preta (Tururu), o Núcleo de Patrimônio Cultural – NUPAC (Moura Brasil), o Minimuseu Firmeza (Mondubim), o Acervo Mucuripe (Mucuripe).

A exposição também problematiza a noção de moderno ao recuperar questões abordadas por Lina Bo Bardi e toda sua pesquisa sobre arte popular durante o período em que esteve à frente do Museu de Arte Moderna da Bahia. Esse debate é feito especialmente no módulo Moderno Popular. Nele, “ensaia-se um método afetivo que coloca em contato peças esculpidas em madeira, algumas de autoria ainda não identificada, com, por exemplo, relevos brancos feitos de punhos de rede de Heloysa Juaçaba e o construtivismo lúdico de um Roberto Galvão”, conta Lisette Lagnado em outro texto da mostra.

Finalmente, o quinto módulo chama-se Miscelânea documental, e dedica-se a buscar a produção de artistas como Maria Laura Mendes, que é citada em textos de jornal dos anos 1930, mas não consta do acervo e nem se localizaram obras suas. A documentação acabou sendo a única forma de tratar dessas ausências. “Toda história é feita de lacunas e apagamentos. É nesse sentido que a presença documental de Maria Laura Mendes configura um gesto de coragem e uma convocatória”, explica Firmeza.
Em outubro passado, a Pinacoteca do Ceará recebeu o seminário Vidas Singulares, Memórias Coletivas, organizado por Lagnado junto à instituição, para aprofundar certas temáticas da exposição, contando tanto com nomes de expressão nacional, como Moacir dos Anjos e Marcelo Campos, como lideranças locais, como Levi Nunes e Sérgio Rocha. As três mesas estão disponíveis no Youtube.

Mais do que discutir um acervo, Existências Paralelas é uma mostra que, sem contar uma única história da arte do Ceará nem pretender representá-la em sua totalidade, fomenta debates e inclusões fora dos cânones, que procuram consolidar a instituição criando vínculos com o território que ocupa. Por isso mesmo, mereceria ser vista em outros estados, tendo em vista a abrangência da produção cearense e a prática da curadoria compartilhada como escuta territorial.


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