O engenheiro químico de formação Pedro Barbosa, que trabalhou por 25 anos no mercado financeiro, iniciou em 1999 a coleção hoje chamada de moraes-barbosa (cmb), que conta com um acervo de obras de arte de peso e um extenso arquivo de documentos raros. Recentemente, foi implementado na coleção um programa de bolsas que propõe que artistas e pesquisadores desenvolvam estudos em interação com o acervo. Em conversa com a arte!brasileiros, Barbosa comenta que um dos obstáculos para o crescimento do circuito da arte no Brasil é o hábito que se tem de jogar questões que envolvam a relação entre ética e estética para debaixo do tapete, quando elas deveriam, na verdade, estar em primeiro plano de importância.
arte!⁕ – Como começou seu projeto de colecionismo?
Pedro Barbosa – De modo absolutamente involuntário. A [galerista] Raquel Arnaud é minha prima de primeiro grau. Eu visitava a sua galeria com alguma frequência, apenas para apreciar. Um dia, comprei uma obra [Petite Ronde Olive (1999), de Jesus Rafael Soto] e foi o início do que se tornou hoje a coleção. Durante minha vida universitária na USP, nos anos 1980, eu já era interessado por museus e pela contracultura paulistana, e acompanhava as artes visuais pelos jornais. Depois da primeira compra, veio a segunda, a terceira e assim por diante. Eu fui, então, tomando gosto pelo colecionismo.
A subida repentina de preços no início dos anos 2000 me expeliu do segmento da geometria abstrata e tive que partir para artistas novos ou em meio de carreira, fui gostando e me envolvendo mais. Até o ponto em que entendi que isso era um espaço de ativismo político. Que eu poderia usar as obras, ou uma certa narrativa da coleção, para me expressar politicamente.
Em 2012, achei que poderia navegar no mercado internacional, fazendo uma compra aqui e ali. Primeiro, tive uma conversa com [o colecionador] Luiz Augusto Teixeira de Freitas, que havia chamado um curador externo para acompanhá-lo no desenvolvimento da sua coleção. O Luiz Augusto foi supergeneroso, contou-me absolutamente tudo, trocamos ideias, “veja, isso aqui fiz errado e não faria de novo; nisso, eu daria mais ênfase”. Peguei uma experiência de nove anos que ele já tinha e copiei o modelo dele, com minhas nuances. Foi ele que me apresentou ao trabalho de stanley brouwn, por exemplo.
Aí vi que precisava de alguém no Brasil com formação e conhecimento que me ensinasse sobre a arte contemporânea internacional e suas tendências. Só tinha um cara, que era o Jacopo [Crivelli Visconti, curador]. Propus a ele trabalhar comigo no desenvolvimento desse projeto, inicialmente pensado para durar dez anos, mas que foi terminado em 2019, quando o Jacopo foi chamado para ser o curador da 34a Bienal de São Paulo.
Em um mês haveria a Art Basel, na Suíça, e Jacopo fez uma lista de 100 artistas contemporâneos, muitos deles bastante conhecidos no circuito artístico atual. Reduzimos a lista para 40, para ter melhor atenção, e deles sobraram no máximo 15 ou 20. Ao mesmo tempo, continuamos olhando a cena brasileira. Fomos montando um projeto que envolvia publicações, residências no Brasil e outras em Londres, em parceria com a Delfina Foundation. Atualmente, tenho uma coleção com certo protagonismo, e Jacopo foi finalmente reconhecido quando foi chamado para fazer a Bienal. Teve uma caça às bruxas violenta a ele, que é um doce de pessoa, muito profissional, dedicado e ético. Convivi com ele por sete anos, todos os dias.
A sua coleção tem um traço muito particular. Como você construiu essa linha de colecionismo?
O Jacopo fez tese de doutorado baseada em artistas andarilhos, que fazem land art, walking art. Então havia essa afinidade com uma arte mais imaterial que me fascinava. Juntou a fome com a vontade de comer. Eu queria caminhar para a arte conceitual, então foi um casamento perfeito. Eu encontrava algumas coisas, ele sugeria outras, e íamos trocando ideias, construindo tudo junto. Dentre esses artistas contemporâneos que vieram da pesquisa do Jacopo está a cipriota Haris Epaminonda, de quem compramos algumas obras já em 2012, e que ganhou o Leão de Prata da Bienal de Veneza em 2019.
Mas logo no segundo ano, eu comecei a trazer umas coisas extremamente contemporâneas que não eram do gosto do Jacopo, porque não tem a ver com a estética dele, por exemplo a obra do Jacolby Satterwhite. Ano passado estive no Haus der Kunst de Munique, no hall principal estava uma instalação gigantesca do Jacolby. Eu fui um dos primeiros compradores dele na história, que era representado apenas por uma galeria perdida em Palma de Mallorca.
Mas isso era eu caminhando minha trajetória, ainda que acompanhado do Jacopo, era uma troca de experiência muito produtiva com extensas conversas. Acabamos olhando coisas diferentes juntos, como Ken Okiish e Nick Mauss. Eram artistas estrangeiros que já produziam antes do começo dos anos 2010, mas eu os peguei num ponto de inflexão, de serem encontrados pelos museus.
Há um diferencial que aproxima você deles. Do que se trata na sua opinião?
Posso talvez fazer um comentário extremamente preconceituoso e perigoso, mas acontece que nos EUA e na Europa estes artistas têm formação acadêmica. E, para este colecionismo que segui, penso que é necessário, mas não suficiente, esse tipo de formação. Tem a minha identidade nisso. Não estou criticando a produção artística que não tenha formação acadêmica. Tudo é arte. Mas este caminho traz para mim uma interlocução com que tenho mais afinidade.
Dê um exemplo de onde isso fica evidente em seu acervo.
A nossa próxima exposição, com a Leslie Thornton, professora na Brown. Uma precursora da videoarte nos EUA. Vamos mostrar cinco trabalhos que nunca foram vistos no Brasil. E que acabaram de ser exibidos no MIT [Massachusetts Institute of Technology].
Mas nem sempre um acadêmico é capaz de construir uma boa obra…
Claro que não. Entretanto, no caso da arte conceitual, que está no foco da minha coleção, o trânsito dos artistas entre as salas de aula e os ateliês cria reflexões que se materializam na produção artística. E como eles não vendiam obras, era inevitável que eles tivessem a academia como fonte de renda. Ou davam aula, ou morriam. Uma ‘ideia’ do Robert Barry ou uma ‘conversa’ do Ian Wilson, dificilmente eram compradas. Ao passo que um bela pintura figurativa tem mais chances de ser comercializada.
Você acha que por isso o León Ferrari, por exemplo, demorou tanto a ser entendido?
Mas acho que ele fez mais obras materiais. Fez pintura, muitas obras em papel e esculturas. Estou falando do grupo que andou a partir de meados dos anos 1960 com o galerista Seth Siegelaub, como Carl Andre, Sol LeWitt e Douglas Hubler, entre outros.
Neste sentido, você acha que é mais difícil num lugar como o Brasil construir uma linguagem como essa?
Muito mais difícil porque são mínimas as escolas de arte. Aqui acham que quem as frequenta é comunista e vagabundo, exatamente o contrário do que se vê na Alemanha, onde um dos pilares da Reunificação, por exemplo, foi a arte. Os EUA fizeram uma conquista estética, viram na arte a importância geopolítica após a Segunda Guerra Mundial. Aqui, infelizmente, tivemos no governo Lula uma oportunidade de fazer uma conquista estética na América Latina, mas… Hoje isso nem passa pelas cabeças desses caras. Por isso é necessário ter um nível educacional mais alto.
Então concluímos que criar um conceitualismo mais radical não é uma questão geracional ou de tendências, mas tem a ver com a possibilidade ou não de adquirir certos conhecimentos. Ou seja, um tipo de cultura…
Um tipo de cultura menos material e comercial. O Antonio Dias, por exemplo, ao estar na Itália, conseguiu total comunicação com artistas e conceitualistas europeus. Entre os grandes artistas da arte conceitual, vale destacar dois grandes nomes: o brasileiro Cildo Meireles e o alemão Hans Haacke. São dois mestres que conseguem juntar a excelência do conceitualismo e a política de forma extremamente harmoniosa. O brilhantismo de Antonio Dias já se expressa, nos anos 1960, quando da criação do NAC (Núcleo de Arte Contemporânea) na Universidade Federal da Paraíba. E o Haacke foi, por décadas, professor da Cooper Union em Nova York. O Cildo tem uma sólida formação acadêmica na Universidade de Brasília (UnB).
Então você, ao se identificar com estes artistas, descobriu uma forma de militância.
Para mim, tem a ver com o jeito como fui formado. Meu pai é professor. Todo mundo em casa tem PhD. Sou o único que não tem. Então sempre tive certa fascinação por este tipo de coisa. Muita gente na família é ligada à universidade.
Por exemplo, vi na Bienal de 2010 uma obra baseada nos métodos de alfabetização do Paulo Freire, um cara sobre quem eu tinha escutado falar em casa a vida toda, e que hoje é execrado por gente que nem o conhece!
Se você olhar as aulas que tem em Harvard, no MIT, na Caltech, das que eu já vi, nada mais são do que variantes de um método desenvolvido por este brasileiro.
Educação para Adultos, do Jonathas de Andrade, é uma obra em que ele formalizou algo político de modo superconceitual. E fui dos primeiros a comprar trabalhos dele.
Viajo muito, estou em tudo quanto é lugar. Tenho acesso a galerias e a espaços independentes, tenho interlocução com estas pessoas que desenvolvem projetos experimentais. Esse foi o caminho.
Aqui, por exemplo, tem uma coleção completa com mais de 300 folhetos do CAyC [Centro de Arte y Comunicación, centro internacional de cultura e arte pop, criado na Argentina nos anos 1970]. Compramos este material. Aqui é o lugar onde tem mais itens sobre o CAyC no Brasil. Assim como a edição de 1966 de Diagonal Cero [revista dirigida pelo artista argentino nascido em La Plata, Edgardo Antonio Vigo, dedicada à arte experimental, conceptual e à poesia visual. Num gesto vanguardista, o editor pulou a edição 25 e a dedica “ao nada”].
Entrei neste jogo sedutor, que é uma Babel ou um labirinto borgeano, em que você entra e de que não sai jamais. As associações são infinitas.
O fascínio está no quase inalcançado. O desejo se move em direção à falta, como diz o Lacan…
É por aí. Eu não vou conseguir dominar a coisa. Estou sempre atrás. É muito gostoso você viver numa relação que é de eterno desafio.
Parece-me que no fundo, seria um pouco o contrário do que vemos no colecionismo visto apenas como commodity, em que o fascínio está em adquirir uma peça para tê-la, esperar que se valorize e depois vendê-la. Aqui o prazer está em você continuar pesquisando, encontrando elos e associações a partir da obra.
E isso é infinito. Desafia muito mais intelectualmente. Não tenho nada contra quem faz isso comercialmente, mas a minha parte comercial é outro lado da minha vida. Neste jogo aqui, estou eternamente caminhando atrás do que eu não sei. E aí, não preciso somente de material. Preciso de pessoas extremamente inteligentes para conviver. Aí, de novo, não dá para tirar a parte humana desse circuito, porque quem faz isso aqui são essas mentes brilhantes. E eu escolhi um caminho que remete à minha história de vida, a meu pai professor, minha irmã cientista, meu irmão também professor, primos na USP e assim por diante. Eu consegui uma independência financeira e estou numa posição privilegiada que me permite isso.
Você comenta que nesse colecionismo há dois mundos diferentes. Mas esse outro, o que te traz independência financeira, ele fica esquizofrênico ou você consegue manter teus posicionamentos nele? Grande parte das instituições públicas está sendo dirigida por executivos ligados ao mercado ou ao mercado financeiro, não só no Brasil, e são geralmente colecionadores, ou profissionais ligados diretamente a galerias. Essas instituições, que manejam alguns milhões, estão tomando decisões estéticas e éticas. Isso não representa um conflito de interesses dentro do que seria um ideal no mundo da arte? Isso não tem que ter limites? Há códigos de ética?
No Brasil, todo mundo é público e privado, porque depende de Lei Rouanet. Se você pegou dinheiro público, você tem que ter respeito pela sociedade à qual ele pertence.
Eu sei, por exemplo, que existe um código no museu Reina Sofía, na Espanha, para os colecionadores que participam dos comitês de aquisição. Há quase dois anos, dois colecionadores que moram em Paris, um italiano e outro grego, chamaram-me para um grupo e fizemos discussões extensivas, para criar um código de conduta. Primeiramente com os artistas, depois os galeristas, os museus, os colecionadores, as instituições independentes, as coleções públicas e as privadas, e assim por diante. Obviamente, isso vai ser sempre reformulado. A primeira versão está no ar no site ethicsofcollecting.org.
Feito em inglês, mas traduzida para o espanhol, chinês e o francês, e em breve teremos a versão em português. Propusemos várias coisas extremamente discutidas e negociadas, visando a uma proposta coletiva. Conseguimos endossos diversos, que veem o código como algo com um objetivo comum, em que todos se beneficiam. Por exemplo, uma coisa que a gente advoga como colecionador: jamais pedir mais de 20% de desconto para um galerista, mas o galerista também tem que ajudar não deixando se influenciar pela pressão que sofre. Se eu mato o galerista, mato um pedaço do circuito.
Tem colecionador que chega e pede 40% a 50% de desconto. Pergunto: qual o interesse? Sufocar o galerista, matar o artista? Veja bem, isso não é um mercado de pulgas onde a regra número um é a barganha. Quando eu não concordo com um preço, simplesmente vou embora, adeus. Os preços se ajustam no tempo.
E nos museus…
É o CIMAM [comitê internacional para museus] que vai te dar um norte, porque é um código público amplamente discutido. Aqui temos mania de jogar para debaixo do tapete, precisamos discutir essas coisas no dia a dia, implementar e aperfeiçoar as condutas do CIMAM.
Mas este tema precisa ser amplamente discutido porque a arte também tem valor comercial e financeiro, e quem coleciona se beneficia das exposições, sejam mostras individuais ou coletivas.
O processo de doações para museus tem que ser profundamente discutido. Quando as pessoas votam a favor ou contra a aquisição de uma obra, pode haver algum tipo de conflito, e isso deveria ser debatido com a instituição e documentado. No caso de videoarte e fotografia, pelo fato de muitas vezes serem edições, obviamente o conflito aparece com mais frequência.
Um outro ponto a ser levantado, é o número de obras de arte mostradas em exposições, em instituições públicas ou privadas, em que os curadores mantêm relações próximas com os colecionadores de onde partem esses trabalhos a serem exibidos. Infelizmente esse não é um problema só do circuito brasileiro de arte, é um problema global.
Mas neste sentido não deveríamos ser mais radicais e dizer que não pode ser o diretor do museu, enfim, aquele que está no museu ocupado de buscar patrocínios etc., a mesma pessoa que está ligada à compra e venda de obras, já que estão se beneficiando sistematicamente da informação de terceiros para isso?
No Brasil estamos caminhando na profissionalização dos museus. No meu ponto de vista a diretoria deve ser de funcionários do museu. Nos conselhos, sim, há espaço para os mantenedores, mas também deveria ter espaço para os outros agentes da arte. Eu tenho preferência pelo estilo de governança da Pinacoteca do Estado de São Paulo. O modelo da Pinacoteca está mais próximo dos modelos estrangeiros em que os diretores são funcionários da instituição.
Parte importantíssima de sua coleção são arquivos. Como os estão organizando, como funciona a sua equipe?
Catalogação e preservação já são questões técnicas importantíssimas, e cuidamos disso. Mas criamos aqui um esquema com o objetivo de transformar o arquivo em algo vivo, mais dinâmico. Então decidimos investir em artistas, curadores, pesquisadores, que por seis meses, trabalham em período part-time, recebem uma bolsa, ficam estudando e pesquisando em temas do seu interesse em intersecção com o nosso arquivo.
Esse percurso tem como objetivo entregar um resultado, de domínio público, que pode ser um vídeo, um livro de artista para baixar da internet, uma exposição, um texto. Os editores somos nós. O pesquisador tem um interesse especial em uma área, esse é o disparador. É isso que vai dirigir seu trabalho.
É como uma residência de pesquisa…
De vez em quando tem de seis a sete pessoas aqui, que vão se ajudando também. Tudo aqui é de domínio público. Um dos bolsistas, o artista Pontogor, começou a pesquisar o trabalho da videoartista holandesa Manon de Boer, que trafega pela arte conceitual e de quem temos aqui, na coleção, seis obras. O resultado foi um vídeo-ensaio que relaciona trabalhos de Manon de Boer, Antonio Dias, Guy Debord, Roberto Bolaño e outros.
Na exposição Horror Vacui, que abrimos no dia 7 de maio deste ano, com organização do Pontogor, é apresentado o vídeo Como Ver um Fantasma?, em que ele investiga as diferentes manifestações do vazio na arte.
Cris Ambrósio e Deyson Gilbert apresentaram a exposição Estado de Possessão – Notas para uma Estética da Tortura, que permaneceu aberta ao público de novembro de 2021 a fevereiro de 2022. ⁕