Monumentos: Estátua do Borba Gato pegando fogo. Imagem: reprodução das redes sociais.
Estátua do Borba Gato pegando fogo. Foto: reprodução das redes sociais.

Um incêndio atingiu a estátua do Borba Gato, na Zona Sul de São Paulo, na tarde do dia 24 de julho. Apesar das chamas, ninguém se feriu e o grupo Revolução Periférica assumiu responsabilidade pelo ato. Em vídeos divulgados nas redes sociais é possível ver uma faixa estendida pelos manifestantes em que lia-se: “Revolução periférica – a favela vai descer e não vai ser carnaval”. Não é a primeira vez que a estátua, inaugurada em 1963 e assinada pelo escultor Júlio Guerra, sofre investidas. Uma ação artística, em 2020, a colocou na companhia de réplicas de crânios, em uma intervenção do Grupo de Ação. Quatro anos antes, em 2016, a peça de 20 toneladas de concreto, revestida de pastilhas, foi banhada de tinta.

A última ação impulsionou um ressurgimento no ambiente virtual do debate acerca das estátuas e monumentos erguidas no passado em homenagem a figuras ligadas à escravidão dos negros no Brasil e às bandeiras, que “assumiram a forma militarizada de organização das expedições de caça e escravização dos índios ou de busca de metais preciosos”, de acordo com Lilia Schwarcz e Heloisa Starling em Brasil: uma biografia. Abaixo listamos trechos de artigos que podem enriquecer o debate, confira:

Para o antropólogo e curador Helio Menezes, em texto publicado pela Folha de S. Paulo, “monumentos nem sempre são salvaguardas da história. Eles dizem mais respeito à mentalidade do contexto de suas criações, às negociações políticas e do direito à memória, que à missão de substitutos do ofício próprio dos historiadores. Sua natureza estática, contrária ao dinamismo dos processos sociais, pode gerar o efeito contrário, congelando no espaço representações de personagens e eventos que o acúmulo de pesquisas históricas, com o tempo, descreditaram como falsas, impróprias”. Menezes nota um fato interessante diante da aparente comoção com o incêndio recente: “Muitos [monumentos] só se fazem notar quando são questionados”. Para ele, tal questionamento reacende o debate sobre as lacunas da história oficial e as memórias apagadas. “Essa justificativa, contudo, é suficiente para mantê-los de pé, reforçando imaginários coloniais e simbologias racistas em meio a nossos espaços de vida em comum?”, pergunta.

Apontando para outro trecho de Brasil: uma biografia, o advogado e professor da FGV Thiago Amparo lembra que o Borba Gato é em si produto do revisionismo da imagem dos bandeirantes, revisionismo esse que mal tem um século. “A imagem de bandeirantes como ‘destemidos exploradores’ somente viria a ser reciclada no começo do século 20”, afirma.

Monumento às Bandeiras, 2016, Jaime Lauriano. Foto: Filipe Berndt/ Divulgação
Monumento às Bandeiras, 2016, Jaime Lauriano. Foto: Filipe Berndt/ Divulgação

O alvo privilegiado no Estado e na cidade de São Paulo são os monumentos dedicados aos bandeirantes. “Apesar da historiografia contemporânea ser rica em estudos críticos que esmiúçam a associação dos bandeirantes com a escravização dos indígenas, eles estão presentes não só em monumentos, mas em um complexo de ruas e estradas que compõem uma espécie de rede imaginária de sua presença no tecido urbano paulistano e paulista”, observa a artista e pesquisadora Giselle Beiguelman em entrevista para a Rádio USP no ano passado.

Referindo-se a antigos atos contra os monumentos, Beiguelman explica: “Não vejo como vandalismo, mas sim como ativismo. No entanto, é importante pensar em formas de contestação que não apenas produzam novos apagamentos da memória, no caso, da memória da barbárie”.

Nessa perspectiva, ela ressalta que vários especialistas vêm propondo novas estratégias curatoriais para lidar com tais monumentos. “Um exemplo seria a migração dessas estátuas para novos lugares de memória, como museus, onde poderiam ser parte de um exercício coletivo de reprogramação simbólica das imagens que os monumentos projetam”, sugere. Ao encontro da proposta da artista, Fabio Cypriano, em artigo para arte!brasileiros, afirma que “a transição para a democracia sem o enfrentamento com o passado violento é um dos motivos para o pesadelo atual”.

Projeção de "Brasil Terra Indígena", de Denilson Baniwa, no Monumento às Bandeiras. Foto: Francio de Holanda.
Projeção de “Brasil Terra Indígena”, de Denilson Baniwa, no Monumento às Bandeiras. Foto: Francio de Holanda.

Menezes sugere que “uma comissão composta pelo poder público e especialistas, sobretudo oriundos dos grupos cujas memórias não foram monumentalizadas, poderia ser constituída para analisar caso a caso”. Entre as alternativas listadas pelo curador estão realocá-los em museus que os apresente criticamente; confrontá-los a partir de intervenções, e “contramonumentos, reconfigurações que convidam à sua ressignificação ‘in loco’ —mandando embora a maldição de sua história única”. Sua ressalva é que não se pode deixá-los como estão: “O horror de um progresso vazio”.

Amparo traz um caso prático para a conversa ao citar comissões estabelecidas na cidade de Nova York em 2018 e na universidade de Yale em 2016 que detalharam quais princípios deveriam servir de base para analisar, caso a caso, a representação da história no espaço público. “Por exemplo, nas redondezas de um Monumento às Bandeiras, dado o seu valor artístico, pode-se incorporar um monumento em memória ao genocídio indígena, preservando assim a obra, mas resignificando-a”, coloca.

O escritor Itamar Vieira Junior, por sua vez, observa que em Salvador há, em frente a um importante hospital particular, uma estátua em homenagem ao conde de Pereira Marinho, que, segundo pesquisa de Cristiana Ferreira Lyrio Ximenes, foi um importante traficante de africanos. “Ele chegou a ter 12 embarcações e dedicou-se ao tráfico de escravizados por quase 30 anos. Estima-se que mais de 11,5 mil homens e mulheres sequestrados de muitas regiões da África, principalmente da Costa da Mina, aportaram na Bahia a partir das embarcações de Pereira Marinho. No fim da vida, o traficante doou parte do seu patrimônio para atividades filantrópicas, como a Santa Casa de Misericórdia, que mantém o monumento em pé até os nossos dias”, escreve.

Vieira Junior afirma que: “No espaço público, onde transita uma sociedade que pretende superar a chaga da escravidão e seus efeitos nefastos, que perduram até nossos dias, devem ser celebrados os valores humanos… Para as vítimas e seus descendentes, assombroso é caminhar entre imagens que homenageiam a violência, ao custo da premissa de que precisamos refletir sobre a história”. Ele complementa que deveríamos imaginar o efeito da substituição desses monumentos por outros que evoquem valores importantes para a vida em sociedade. “Ter imagens de abolicionistas do passado e do presente ou monumentos às vítimas de nossa tragédia histórica, a exemplo dos que existem em memória das vítimas do Holocausto, pode fazer a diferença para nossa percepção de história e do projeto de sociedade que queremos”.

Pedestal onde ficava a estátua de Edward Colston. Foto: Wikimedia Commons / Marnanel.
Pedestal onde ficava a estátua de Edward Colston. Foto: Wikimedia Commons / Marnanel.

É importante ressaltar, também, que a movimentação e indignação popular que leva a protestos desse tipo devem se repetir à medida que a sociedade continua em transformação e, lamentavelmente, “os assassinatos de pessoas negras [e indígenas] acontecem de novo de novo e de novo”, como apontam Fabiana Moraes e Moacir dos Anjos em artigo publicado na Revista Rosa. Eles afirmam que, nos EUA, por exemplo, “sentir de novo [após o assassinato de Floyd, em 25 de maio de 2020] levou não só multidões até as ruas, mas levou diversas estátuas ineditamente até o chão. Levou, ainda, prefeituras e outros órgãos a repensarem o que fazer com os seus monumentos, preferindo deixá-los fora das praças nas quais não é mais possível a manutenção da ode”. Para os autores, ainda, “na reescrita da história através das imagens, uma das ações mais bonitas foi justamente aquela que lançou as imagens de Floyd, por meio de hologramas, sobre os locais onde estavam — ou estão — as imagens de confederados, monumentos a generais sulistas que defendiam a escravidão e combateram na Guerra Civil de 1861–65”.

Sobre o assunto, leia também artigos de Tadeu Chiarelli (aqui) e Naiara Tukano (aqui), publicados pela arte!brasileiros.


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