Gilberto Chateaubrind, 2008 , MAM RIO, série “Os negativos estão em meu poder”. Foto: Vicente de Mello

A imagem mais icônica do colecionador Gilberto Chateaubriand (1925 – 2022), realizada em 2008 por Vicente de Mello, ganhou tridimensionalidade para a comemoração do centenário de seu nascimento no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. As dezenas de pinturas no espaço monumental do museu, colocadas ali apenas para uma fotografia de uma revista francesa, foram agora quase todas remontadas para compor a mostra “Gilberto Chateaubriand: uma coleção sensorial”, com curadoria de Pablo Lafuente e Raquel Barreto. Na época, o curador do MAM Rio era Reynaldo Roels Jr. (1951 – 2009). “Foi como fazer um flash mob”, recorda-se Vicente.

Não deixa de ser um início impressionante para homenagear o colecionador que praticamente salvou o museu que perdeu 50% de seu acervo em um incêndio, em 1978. Desde 1993, cerca de 6.400 peças foram sendo incorporadas aos poucos sob a guarda do MAM Rio. No total, 8.300 peças compõem a Coleção Gilberto Chateaubriand.

Nessa parede monumental estão algumas das obras-primas da coleção, como Urutu (1928), de Tarsila do Amaral, que, na foto, estava em um cavalete para onde o colecionador olhava. A pintura faz parte das poucas obras da fase antropofágica da artista e seu valor está na casa dos milhões de reais. Também está lá O Farol (1915), de Anita Malfatti, obra comprada em uma exposição, em São Paulo, uma das que mais orgulhava o colecionador. “Já me ofereceram fortunas por esse quadro, mas eu não vendo minhas obras”, me disse Gilberto, há muitos anos.

A exposição conta ainda com outros quatro núcleos, como Origens, que recupera a primeira grande mostra da coleção de Gilberto no MAM Rio, realizada em 1981, chamada Do moderno ao contemporâneo. Está lá desde A Japonesa, de Malfatti, até um dos icônicos Bicho, de Lygia Clark.

No mesmo núcleo está sua primeira aquisição, Paisagem de Itapoã, comprada do próprio autor, o pintor José Pancetti (1902–1958), em 1953, em seu ateliê na cidade de Salvador, na Bahia, onde o diplomata estava a convite de outro colecionador, o jornalista Odorico Tavares. A visita ao ateliê de artistas se tornou uma rotina que Gilberto fez até perto de morrer. Ele gostava de conhecer o ambiente de criação, conviver e ter amizade com os autores e autoras das obras que comprava e era uma unanimidade entre artistas.
Durante o período de ditadura militar, Gilberto adquiria muitas obras consideradas subversivas como forma de dar apoio a figuras como Glauco Rodrigues, Antonio Manuel, Carlos Zílio e Carlos Vergara, que nada vendiam por conta de suas temáticas políticas. Todos estão presentes na mostra do MAM Rio.

Outro núcleo, denominado Fronteiras, acompanha o interesse do colecionador por artistas trabalhando em contextos fora do eixo Rio-São Paulo, uma prática que existiu desde o início da coleção. Em 2002, participei junto de Gilberto do júri do Salão Nacional de Goiás, em Goiânia. Nos tempos livres, visitamos ateliês de vários artistas, como Antonio Poteiro, Pitágoras e Marcelo Solá, e ele saiu da cidade com nada menos que 30 trabalhos novos. Poteiro e Pitágoras também estão na mostra do MAM Rio.

O abstracionismo, aliás, não é um estilo com forte presença na coleção de Gilberto. Uma de suas obsessões, de fato, são retratos e autorretratos, o que faz com que a figuração seja predominante em seu acervo. “Quando comecei a colecionar, tive que fazer uma opção, pois achava que não podia comprar tudo, então me dediquei à figuração”, contava.

É por conta disso que outro núcleo da mostra se chama Retratos. O próprio Gilberto aparece em vários deles, seja em uma pintura de Glauco Rodrigues, onde ele aparece junto a muitas de suas obras, seja em uma outra fotografia de Vicente de Mello, que o retrata em sua fazenda de plantação de laranjas, em Porto Ferreira, no interior de São Paulo.

Finalmente, o último núcleo se chama Artistas, e busca aproximar o público do processo criativo do colecionador, com estudos, projetos e esboços de nomes representativos da coleção. Um dos destaques aqui é Edival Ramosa (1940 – 2015), filho de pai indígena e mãe negra, que vem conquistando visibilidade apenas recentemente como expoente do abstracionismo geométrico no Brasil. Ele está em cartaz na 36ª Bienal de São Paulo. No Rio, ele comparece com vários estudos de cor, que atestam sua originalidade e importância, além de um painel múltiplo, que foi uma comissão do colecionador, e uma peça de madeira.

O título da exposição é uma citação do próprio Gilberto: “Eu sou um sensorial. Um dionisíaco, digamos. A obra de arte é tão impressionante que motiva uma excitação mental e corporal também”, contou em conversa gravada com seu filho Carlos Alberto Chateaubriand e o curador Luiz Camillo Osorio, em 2014.

A empolgação e excitação dele com a arte de fato era uma constante, tanto que seu aniversário era religiosamente celebrado em um simples boteco cercado de amigos artistas. Apesar de pertencer a importantes conselhos, seja do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), da Fundação Cartier, em Paris, ou da Bienal de São Paulo, seu estilo era muito distinto da atitude predatória no circuito da arte de boa parte dos colecionadores atuais. Tanto que não vendia obras e sua coleção segue com visibilidade no MAM Rio. O colecionismo privado atual, com poucas exceções, é muito mais voltado a interesses pessoais e passa longe de perceber uma função pública.

O vínculo com as artes em Gilberto, no entanto, é uma questão de família. Seu pai, o magnata da mídia Assis Chateaubriand, o Chatô, foi o mais importante empresário na área de comunicação do país, nos anos 1940 e 1950, e criador do Museu de Arte de São Paulo, o Masp, inaugurado em 1948, que reúne a mais importante coleção impressionista da América Latina. Entretanto, as opiniões de ambos, na arte, eram divergentes. “Tínhamos gostos completamente diferentes, eu sempre preferi os modernos e recebi orientação de alguns deles como Antônio Bandeira, meu grande amigo, e Carlos Scliar, para iniciar a coleção”, me disse.

O conjunto da obra, contudo, tem não só modernistas com obras icônicas, caso de Vicente do Rego Monteiro, Di Cavalcanti, e as já citadas Tarsila e Anita, mas se tornou um também referência da arte contemporânea. “A coleção de Gilberto consegue oferecer um panorama complexo da história da arte brasileira do século 20, atenta aos movimentos e artistas que a compuseram, tornando-se uma das mais importantes do país ao mesmo tempo que revela as relações fascinantes que Gilberto tinha com obras e com artistas”, defende Lafuente, que além de curador da mostra é o diretor artístico do museu.

Junto da exposição, o centenário é celebrado pelo documentário Diplomacia e Arte: a vida de Gilberto Chateaubriand, produzido pelo Instituto Guimarães Rosa do Ministério das Relações Exteriores, que conta a história do colecionador por muitos de seus amigos, entre eles o chanceler Mauro Vieira. Dirigido por Fábio Cappellini, a produção pode ser vista no site do MAM Rio.


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