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Anna Maria Maiolino, "Capítulo I", da série "Mapas Mentais", 1971. Foto: Divulgação

Anna Maria Maiolino, “Capítulo I”, da série “Mapas Mentais”, 1971. Foto: Divulgação

Híbrido entre revista e livro, lançada em formato digital e gratuito, Presente é uma publicação com características bastante singulares no universo das artes. Não se trata de uma publicação de textos críticos ou resenhas, nem de um livro focado em imagens, sejam elas fotografias ou reproduções de obras. Não é também uma reunião de artigos acadêmicos, nem mesmo uma revista de linguagem jornalística. Presente, nova publicação concebida pelo curador Paulo Miyada e pela artista Anna Maria Maiolino, tem como foco correspondências – ou podemos chamá-las de cartas – e “outros formatos de textos e produções feitas entre duas ou mais pessoas”. 

Criada em resposta aos tempos difíceis da pandemia – em que a necessidade de distanciamento social afastou, ao menos fisicamente, as pessoas -, a revista surge como propositura de diálogos e trocas, como uma forma de aproximação e até de cuidado e zelo entre os participantes. Lançada no último mês de abril, com periodicidade trimestral, Presente é o desdobramento de uma primeira correspondência trocada entre Miyada e Maiolino ainda nos primeiros meses da pandemia de Covid-19. “No primeiro semestre de 2020, quando passamos a fazer o isolamento – pelo menos quem pôde e apesar da ausência de uma política de Estado neste sentido -, eu imaginei que para os artistas a suspensão dos encontros entre eles, e também de suas obras com o público, estaria sendo algo difícil”, conta Miyada. “E tentei pensar como é que, apesar de todos os cancelamentos e suspensões, seria possível manter algum nível de diálogo com essas pessoas.” 

Castiel Vitorino Brasileiro, “Corpo-Flor”, 2016-2021
Série fotográfica. Foto: Divulgação

Foi aí que o curador passou a escrever um conjunto de cartas para artistas que admirava e com quem já possuía algum tipo de convívio. Entre eles estava Anna Maria Maiolino, para quem o curador endereçou palavras sobre aquele contexto pandêmico, tão incerto,  transparecendo seus medos e inseguranças, mas também comentando sonhos e devaneios artísticos. Um diálogo afetuoso se seguiu com a resposta da artista, e a conversa acabou sendo publicada no blog Entretempos da Folha de S.Paulo. “Meses depois, no fim de 2020, a Anna me ligou e propôs de fazermos algo, uma publicação ou uma revista, um canal de conversa não só entre nós, mas agora expandido para outras pessoas que quisessem pensar o presente”. Com o convite já veio o título, assim como a decisão de que fosse uma publicação predominantemente de correspondências.

O nome, portanto, diz respeito aos três sentidos da palavra “presente”. Primeiro, o tempo atual, o agora, “que significa colocar em primeiro plano a possibilidade da arte debater o seu tempo, fazer parte de uma esfera pública, em que os problemas éticos são parâmetro fundamental dos problemas estéticos”, explica Miyada. Este “tempo presente” só pode existir, destaca ele, ao se olhar atentamente para o passado, sem invisibilizar a memória, e tendo algum horizonte de futuro, “ao menos a possibilidade de construção coletiva e de consequência para as ações individuais”. Em segundo lugar, “presente” é a interjeição enunciada por estudantes ao responder à chamada escolar e emitida por manifestantes em uma assembleia. “E isso me parece importante já como começo de conversa, assumindo que a revista quer expandir o diálogo para além da esfera familiar ou privada. Estamos aqui, pensando em voz alta sobre a situação”, diz Miyada. Por fim, “presente” se refere ao gesto de dar algo, a dádiva, importante pilar de sociedades do passado e do presente. “É um regime de intercâmbio não baseado na moeda, nem no pressuposto de acumulação infinita, mas baseado no dispêndio e na troca. E acho que a Presente tem um pouco desse espírito.”

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Pat Bergantin, da série “Metal”, 2020. Frame de vídeo, 30’’. Foto: Divulgação

Um outro tempo

Assim como se distancia dos textos acadêmicos ou jornalísticos, o formato de cartas também propõe um tipo de conversa que não é o das redes sociais e aplicativos – com a dinâmica acelerada e o ar efêmero que lhe são usuais. Para Miyada, o distanciamento físico entre as pessoas acabou sendo compensado, de algum modo, pelo uso de “certos canais tecnológicos que têm virtudes, mas também têm vícios e tendem a enfatizar só um tipo de comunicação”. E ele completa: “Voltar para a lógica da correspondência, algo que leva um tempo para escrever, para ser lido, para ser respondido, é uma forma de exercitar outro modelo, que não é em si melhor ou pior, mas que acaba tendo um ritmo contrastante com o dos meios que temos usado para nos comunicar”. Presente, desse modo, dá espaço para o que Miyada chama de “textos processuais”, abertos, que surgem como uma forma de compartilhar ideias e de lidar com o momento sem reflexões que se proponham definitivas.

Ao lado de Maiolino e Miyada, participam da primeira edição de Presente – disponibilizada em pdf e com formatação para ser impressa em folha A4 -, a crítica e curadora Lisette Lagnado, a professora e psicanalista Tania Rivera, os artistas Dalton Paula e Paloma Durante e a artista e dançarina Pat Bergantin. Intercalados entre os conjuntos de correspondências, surgem nas páginas da publicação poesias de Edimilson de Almeida Pereira e obras visuais de Castiel Vitorino Brasileiro, Fernanda Gomes, Pedro Moraleida. Há ainda uma tradução inédita de ensaio de 1986 da escritora norte-americana Ursula K. Le Guin. A diversidade de campos de atuação dos autores dos textos e trabalhos reflete, portanto, na multiplicidade de temas e linguagens que percorrem a revista, para além do campo das artes visuais. Mas a amarração de tudo está, mais uma vez, na busca de diálogo e no zelo entre as pessoas, uma espécie de cuidado que se contrapõe à realidade quase distópica que se apresenta no globo.  

Pedro Moraleida, "Ave Maria Gracia Plena", da série "Casais sorridentes de mãos atadas 02", 1998/1999. Foto: Guilherme Horta/ Divulgação
Pedro Moraleida, “Ave Maria Gracia Plena”, da série “Casais sorridentes de mãos atadas 02”, 1998/1999. Foto: Guilherme Horta/ Divulgação

“No mundo contemporâneo, o que tem se exacerbado são violências muito antigas. Do racismo, do genocídio programado das populações indígenas, do ecocídio, dos atentados ambientais, da restrição de liberdade de expressão. Processos que percorrem séculos, imbricados na história do Brasil e do mundo”, afirma Miyada. “Talvez o que seja singular nesse momento é o que tem sido chamado de necropolítica, que vem com uma racionalização perversa que deslegitima o direito à vida, que vai além da restrição da cidadania e dos direitos e alcança uma banalização da própria vida. E temos visto isso ser exacerbado no contexto da pandemia, num formato ainda mais obsceno”. E ele conclui: “Então inevitavelmente um pensamento crítico hoje precisa ser feito de uma forma que não reproduza esse desprezo pela vida de cada pessoa – e penso que os artistas, pesquisadores e pensadores estejam procurando este vocabulário. Isso é uma das coisas que aparecem nas cartas da Presente“.


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