Imagem do livro Memórias Sangradas, vida e morte nos tempos do cangaço
Ulysses de Souza Ferraz mostra fotografia da volante de Nazareth, composta por seus parentes e comendada por seu pai. Foto: Ricardo Beliel

Com o tempo perdemos a transmissão da história pela oralidade; pior, perdemos o poder da escuta. Do silêncio, do tempo que transcorre tranquilo sem a necessidade de apressá-lo. Com o tempo perdemos nossa capacidade de olhar para nossos rostos para ver as nossas marcas, para entendermos o nosso ser e estar no mundo.

Mas é esse tempo perdido, essa voz que adoça os ouvidos, que reencontramos no livro do repórter e fotógrafo Ricardo Beliel, Memórias Sangradas: vida e morte nos tempos do cangaço, Editora Olhares e apoio do Rumos Cultural.

A publicação reconta uma história que há muito perpassa o imaginário brasileiro, tendo sido contada em livros, fotos e filmes: a do cangaço. O movimento que dominou o sertão nordestino de 1920 até ser definitivamente aniquilado em 1938 pelas tropas do então governo do Getúlio Vargas, na famosa batalha de Angico em Sergipe. A saga de Virgolino Ferreira, conhecido Lampião (1898-1938), Maria Bonita (1911-1938) e seu bando, composto entre outros por Corisco, Dadá, Pancada, Labareda, Volta Seca e Jararaca é talvez uma das mais importantes e conhecidas da história brasileira.

E foi atrás desta história que o jornalista Ricardo Beliel e sua esposa, a artista plástica e cineasta Luciana Nabuco, embarcaram. “Tudo começou em 2007, quando fiz uma reportagem para uma revista europeia chamada Geo. Junto com um repórter espanhol subimos o Rio São Francisco”, nos conta o autor. Foi lá que Beliel relembrou sua infância, quando sua mãe professora de história e geografia gostava de contar para a família as narrativas da cultura brasileira, e escutou histórias dos que ali ainda viviam. Foi ali também que soube que havia remanescentes do movimento do cangaço. O então menino, que ouvia encantado sua mãe falar sobre o interior nordestino, sobre o sertão, por meio dos livros de Graciliano Ramos e de Rachel de Queiróz, entres tantas outras histórias, ampliou seu imaginário.

Naquele mesmo ano, na verdade, na mesma semana, Ricardo Beliel, como freelancer, retornou ao sertão nordestino para produzir algumas matérias sobre o assunto do cangaço. Conseguiu publicar algumas matérias em revistas, mas foi só em 2014 que ele convidou Luciana Nabuco para percorrerem juntos o sertão nordestino, procurar os lugares por onde o bando de Lampião andou e tentar falar com as pessoas que habitavam aquelas paragens, ouvir suas histórias, fotografar suas memórias. De 2007 a 2019 foram nove viagens, 11 mil quilômetros percorridos de carro, sete estados visitados e muitos, muitos, depoimentos gravados e rostos e lugares fotografados: “Queríamos ouvir a história destas pessoas. Sabemos que muito já foi dito e escrito, mas queríamos contar essa história por nós mesmos como uma grande reportagem, uma memória social daquele tempo”. O apoio de Luciana Nabuco foi fundamental. Nascida no Acre, ela, assim como Beliel, cresceu ouvindo seu pai contar histórias de seu longo caminhar, da cultura familiar. Como afirmava a pesquisadora e psicóloga social Ecléa Bosi: “A memória oral é um instrumento precioso se desejamos constituir a crônica do cotidiano”.

Imagem do livro Memórias Sangradas, vida e morte nos tempos do cangaço
Ana Cleto e Pedra, parentes dos cangaceiros Zé Gato e Sabina. Foto: Ricardo Beliel

A cada retorno, ao ouvir as histórias que haviam gravado, resolveram então que a semântica da fala dos personagens deveria ser preservada. Os entrevistados, em sua grande maioria pessoas quase centenárias, são descendentes da época do cangaço, personagens de um ciclo da história do Brasil que nem sempre foi bem lembrada.
Desta forma, Ricardo Beliel começou a escrever o livro entrelaçando sua visão como jornalista – que é e sempre foi – com os depoimentos dos 43 personagens que selecionou para fazer parte de Memórias Sangradas. Aos escritos juntou suas fotos, mas também foi atrás das fotos que os próprios personagens guardavam em suas casas. Fala-se muito do libanês Benjamin Abrahão (1890-1938), que fotografou e filmou o bando na década de 1930, mas muitos outros fotografaram o movimento sem o devido reconhecimento, visto que na época falar em crédito na fotografia era quase inexistente. Muitas vezes o que aparecia era o nome do proprietário do jornal. Beliel encontrou estas imagens na casa dos próprios entrevistados e as reproduziu mesmo sem retoques, sem trazer um ar novo para a fotografia, mas resguardando as marcas do tempo que já haviam se incorporado às imagens: “Foram fotografias feitas nos anos 1920 e 1930, adquiriram marcas do tempo da história que quisemos preservar”, comenta Beliel.

O resultado, embora em tom jornalístico, relembra um pouco os grandes livros épicos onde histórias de morte, de amor, de luta, de vinganças, de encontros e desencontros nos são recontadas. Daí a ideia do título. Um livro construído pela escuta – aliás, papel este do jornalista, seja ele de texto ou da fotografia: “Este livro é o renascimento do repórter que nunca deixei de ser”, conta Beliel. Mas é Luciana Nabuco que em forma de poesia no prefácio e posfácio do livro nos lembra que ”estamos perdendo a história porque estamos deixando de escutar nossos velhos. Eles são as nossas fontes primárias”.


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