José Antônio da Silva
Obra sem título de José Antônio da Silva.

José Antônio da Silva, um dos principais intérpretes da vida e da cultura do interior de São Paulo, era frequentemente tido como “primitivo” por ser um artista autodidata. Apesar de Silva ter se posicionado como defensor da arte primitiva ao longo de toda a sua vida, a palavra carrega um estigma, pois pressupõe uma linha evolutiva em que algumas culturas seriam mais “avançadas”, enquanto outras seriam mais “atrasadas”.

Mas a obra de Silva, cuja morte completa três décadas no próximo ano, continua mais atual do que nunca; recentemente, ganhou uma mostra monográfica na França, em Porto Alegre e em São Paulo. Seus trabalhos transcendem o rótulo de primitivo – e é isso que o pintor e curador Paulo Pasta busca combater em Eu Sou o Silva, mostra em cartaz na Galeria Estação que une obras que ressaltam a versatilidade do artista e redefinem seu legado como pintor. 

As pinturas, produzidas entre as décadas de 1940 e 1980, provêm de coleções particulares e do próprio acervo da galeria. A seleção, afirma Pasta, apresenta exemplos para além dos trabalhos mais conhecidos do artista, mostrando como, à sua maneira, Silva incorporou várias influências do modernismo brasileiro em seus trabalhos. 

José Antônio da Silva
Obra sem título (1972) de José Antônio da Silva.
Foto: João Liberato.

“Ele sempre foi muito consciente e atento aos seus meios expressivos, sabia como transformar a sua poética em forma”, afirma o curador. “E fez tudo sem salvaguarda, sem nenhuma formação, com seus próprios recursos. O Silva tinha grande consciência do valor que tinha. Ele dizia: ‘se todo mundo diz que eu sou um gênio, para que eu vou ser burro e dizer que não sou?”.

O curador destaca as paisagens rurais do artista que adquirem caráter abstrato: cada ponto representa uma unidade da plantação, que se estende até o horizonte e se confunde com as nuvens. Em certas obras, pode-se observar a influência do pontilhismo, em que cada pincelada vira um elemento constitutivo do espaço. 

José Antônio da Silva
Obra sem título (1987) de José Antônio da Silva.
Foto: Filipe Berndt.

Um exemplar que destoa do conjunto do trabalho é uma natureza-morta de 1954, pintada em tons sombrios e terrosos. Silva retrata mamões ao lado de um ninho de marimbondos, ameaçando um perigo que pode se desdobrar a qualquer momento – a cena reflete a narrativa de uma pessoa com experiências de trabalho ligadas ao campo, que não vê a natureza como idílica, mas sim um terreno de disputas frequentes. “É algo entre a vida e a morte, a doçura e a amargura, o prazer e a dor. Ele revive os mitos fundamentais do homem”, opina Pasta. 

“O Silva não simplesmente reproduzia a natureza – ele seguia a máxima de que o pintor não pinta o que vê, e sim vê o que pinta”, afirma o curador. “O retrato que ele fez de sua vida foi de um jeito novo, projetando um pouco da sua essência. Isso fez a obra dele ganhar um caráter atemporal”. 

José Antônio da Silva
“Abelhas e mamões” (1954), de José Antônio da Silva.

Essa dialética de tensão e convivência também está presente nas paisagens de Silva. Em uma obra de 1987, o confronto entre a natureza e a civilização é evidenciado por meio de troncos decepados, em frente a um imenso algodoal. Já nos retratos de cenas urbanas, em vez de destacar pessoas, representava conjuntos habitacionais anônimos, enfileirados, assim como suas paisagens de plantações.

Além da admiração crítica por Silva, o pintor desempenhou um papel importante na formação pessoal de Pasta. O curador já encontrou-o em viagens intermunicipais de ônibus, e o artista prontamente  compartilhou causos, memórias de infância e vivências de trabalho no campo, que se refletem em cenas de sua obra. “Ele era um típico caipira fabulador”, afirma o curador. “Ele contava histórias que apareciam no trabalho dele – uma queimada, um aguaceiro que tudo inunda. Essas lembranças aumentam a fantasia, dão asas à imaginação. Mas a fabulação não toma lugar da realização plástica. Tem uma equivalência entre o que ele está falando e como”. 

É a segunda mostra que Pasta organiza na Galeria Estação – a outra ocorreu em 2009 e, desde então, a obra do artista continua em voga. No texto crítico, Pasta começa com uma citação de Pablo Picasso: “desde Van Gogh, todos nós somos pintores autodidatas, quase primitivos”. Silva se posicionava ao lado desses dois artistas, seus preferidos, como um dos gênios da pintura moderna. Suas cenas inauguram um universo ambíguo, intermutável, em que motivos e formas se confundem – como em “Trem”, obra de 1977 na qual a fumaça de uma locomotiva que corta campos se dissipa no ar e se transforma em horizonte com uma pincelada rápida. “Para ele, importante não era pintar a vida da natureza, mas tornar viva a própria pintura”, afirma o curador. 

 


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