Com as crises políticas e econômicas que se sucederam no Brasil nos últimos anos, tornaram-se ainda mais profundas e notáveis as históricas dificuldades enfrentadas pelas instituições culturais do país. Museus, centros culturais e outras organizações, já acostumados a trabalhar com pouca folga em suas finanças, adentraram um período de crescente incerteza com cortes de verbas e, simultaneamente, ataques políticos contundentes ao campo da cultura. A situação se agravou drasticamente com a posse do atual governo federal, de Jair Bolsonaro, que além das restrições orçamentárias e do desmonte de mecanismos de atuação do setor, intensificou discursos e práticas de enfrentamento a artistas e instituições culturais do país.
Em um ano e meio de governo, a cultura foi rebaixada de ministério para secretaria – vinculada ao Turismo – e chega agora ao seu quinto titular na pasta. “Isso demonstra que para eles a cultura não tem a menor importância. Que é só uma burocracia, destituída de qualquer fato relevante que justifique sua presença num aparato de governo. Subordinar a Cultura ao Ministério do Turismo é de uma falta absoluta de visão, inclusive estratégica. É entender a cultura apenas como entretenimento ou elemento de atração turística para um país, uma sociedade”, afirma Danilo Santos de Miranda, diretor-geral do Sesc-SP, uma das instituições constantemente ameaçadas de corte em seu financiamento, vinculado ao Sistema S. Para Solange Farkas, diretora da Associação Cultural Videobrasil, a cultura foi declarada inimiga pelo governo, o que demonstra uma prática típica do fascismo. E ela vai além: “Temos um governo que desrespeita a cultura, ataca a cultura, elimina a cultura. Na verdade, isso diz respeito à cultura, à imprensa e às instituições democráticas, nesse flerte claro com o totalitarismo.”
O que já parecia um quadro extremamente conturbado e ameaçador ganhou contornos ainda mais dramáticos com a chegada da pandemia do novo coronavírus e a necessidade de isolamento social – no Brasil, desde março deste ano. Entre abril e junho, após o encerramento das atividades presenciais de museus, centros culturais, associações e galerias, a arte!brasileiros iniciou uma série de entrevistas com gestores de algumas das principais instituições do país. Além de Miranda e Farkas, conversamos com Jochen Volz (Pinacoteca do Estado de São Paulo), Eduardo Saron (Itaú Cultural) e Ricardo Ohtake (Instituto Tomie Ohtake). Nesta edição, ouvimos também Marcelo Araujo e João Fernandes (Instituto Moreira Salles) e a série de entrevistas segue em nosso site com diretores de instituições de outras regiões do país.
Vale destacar que quando foram realizadas as entrevistas o governo ainda não havia sancionado a Lei Aldir Blanc, medida que garante renda emergencial de R$ 600 reais a trabalhadores da cultura e de R$ 3.000 a R$ 10.000 a micro e pequenas empresas, associações e organizações da área. A lei, através da qual o governo deve liberar R$ 3 bilhões, foi resultado da pressão da classe artística, que apelou ao Congresso para driblar a inação da secretaria da Cultura. Até a publicação desta matéria ainda não havia informações claras sobre os destinatários do programa nem data definida para o início dos pagamentos, já que o presidente havia vetado o artigo que obrigava a liberação imediata das verbas.
Em conversas que transitaram por assuntos específicos de cada instituição e por temas mais gerais, os cinco entrevistados demonstraram grande preocupação com o contexto político e social do país, mas refletiram também sobre os possíveis caminhos de atuação neste momento. Falaram ainda sobre a intensificação da atuação virtual das instituições no período da pandemia, sobre o mercado de arte e sobre uma realidade global que precisa ser repensada após a passagem do coronavírus, entre outros temas. Leia a seguir os principais trechos das entrevistas.
A atuação nos tempos de isolamento
“O museu é um lugar de diálogo, de construção participativa. Agora estamos em um momento de reflexão, aprendizado e experimentação para ver quais são as formas de manter esse mesmo espírito, mas de forma digital, à distância”, afirma Jochen Volz sobre o trabalho na Pinacoteca. Para ele, “nada substitui uma visita presencial, mas enquanto não for possível, o museu aproveita as possibilidades da internet”. Como resultado das várias atividades promovidas – como uma campanha sobre as obras do acervo, lives com curadores e artistas, um tour virtual pelo museu e a abertura de uma mostra exclusivamente virtual -, Volz destaca não só um considerável aumento nos números de seguidores nas redes, mas também novos modos de interação com o público.
O diretor da Pinacoteca percebe também que essa mudança na atuação durante a pandemia deverá deixar um legado para o período que se segue, mesmo quando as atividades presenciais voltarem. “Estamos discutindo de que forma vamos integrar mais as iniciativas online às atividades presenciais. É importante entender que o museu e o público estão aprendendo ainda como se relacionar de forma efetiva nos meios digitais. Mas tudo que realizamos neste período nos mostra que temos que ficar mais atentos a esses desdobramentos que vão além do espaço físico do museu.”
Para falar sobre a intensa programação online do Sesc-SP nos últimos meses, Danilo Miranda ressalta inicialmente a tentativa de seguir trabalhando com a ideia de “bem-estar social e bem viver”, o que representa a missão da instituição. “A gente lida com cultura nesse sentido bastante amplo. Cultura, para mim, quando a gente considera em um sentido mais antropológico, não é um aspecto da vida, mas é o universo onde estamos inseridos. Diz respeito aos nossos hábitos, à nossa língua, nossa maneira de ser. E então nós trabalhamos questões de atividades físicas, de alimentação, de saúde e com o campo das artes”, explica. “Neste momento, o Sesc procura corresponder a essa expectativa usando as ferramentas que tem à sua disposição”, afirma, destacando as apresentações virtuais de música e teatro, a disponibilização de um vasto acervo digital audiovisual e a realização de conversas e debates sobre ética, questões sociais e artísticas, entre outros.
Para Miranda, no entanto, em discurso consonante ao de Volz, a atuação virtual nunca será suficiente. “Afinal, o ser humano tem a questão da relação pessoal, presencial, inerente à sua natureza. E o encontro mais cedo ou mais tarde vai voltar a acontecer, mas por enquanto o caminho é o isolamento, o afastamento. Então nesse momento não há como se envolver presencialmente, mas digitalmente existem recursos que têm sido aprimorados. A pandemia seria muito mais grave se não fossem essas ferramentas de aproximação virtual.”
Com uma série de depoimentos de artistas, curadores, filósofos, escritores e cineastas, o Instituto Tomie Ohtake, por sua vez, criou a série intitulada #juntosdistantes, tratando de temas variados, inclusive relacionados ao próprio isolamento social. Também se manteve ativo virtualmente com os cursos, podcasts e discussões sobre questões como racismo, negritude e lugar de fala. Ricardo Ohtake não nega, no entanto, a dificuldade em lidar com o momento. “Nós não sabemos quando é que vão acontecer as coisas, então você leva as ideias até certo ponto e a partir daí não consegue planejar mais nada, fica tudo meio no ar.”
“Confesso que o planejamento não é uma tarefa fácil”, concorda Eduardo Saron. “Como todos, tivemos de nos reinventar e reorganizar os recursos, não somente financeiros, como também organizacionais e humanos, uma vez que, mesmo com a situação diferenciada que o Itaú Cultural (IC) tem, fazemos parte deste ecossistema cultural e econômico, hoje, extremamente afetado”, diz ele. Ao intensificar sua atuação online, o IC se beneficiou também de um vasto acervo que já possuía, relativo aos mais variados campos artísticos. Saron relembra que o instituto nasceu, há mais de 30 anos, para ser uma base de dados de artes plásticas – hoje parte da Enciclopédia de Arte e Cultura Brasileira – e que, neste sentido, a organização está se reencontrando com sua origem.
Parte de um planejamento anterior ao isolamento, o IC também lançou em abril o Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural, uma plataforma digital dedicada à análise de dados sobre cultura e economia criativa. Além disso, o instituto partiu da particularidade de ser uma instituição vinculada a um banco para criar editais de emergência em diferentes áreas artísticas. “A instituição se propõe a acolher parte dos artistas sujeitos a atuar isoladamente e sem remuneração neste período de supressão social”, afirma Saron. “Precisamos ajudar a oferecer liquidez para a economia da cultura nesse período crítico. Além de, naturalmente, oferecer oxigênio criativo afetivo para as pessoas que nos acompanham virtualmente nos nossos canais.”
Apesar da injeção financeira em um mercado fragilizado, a iniciativa não passou imune a críticas, de um lado por ter selecionado, entre centenas de beneficiados, alguns nomes já renomados; de outro, por ser vista como um estímulo à competição e à produtividade como única moeda de troca neste momento de crise. Sobre o assunto, Saron argumenta que o Itaú Cultural já possui uma forte tradição na realização de editais e que, ao perceber uma intensa difusão artística circulando nas redes, teve como intuito “oferecer mais dignidade para a produção e o pensamento artístico em um período como este, mesmo sabendo que, naturalmente, temos escalas limitadas para fazer esse tipo de apoio”.
O desequilíbrio global
Em uma direção distinta à das instituições que intensificaram sua atuação virtual, o Videobrasil se manteve praticamente ausente das redes sociais nos últimos meses. “Essa parada obrigatória foi para mim, em um primeiro momento, uma coisa meio paralisante mesmo. Não apenas pela questão da pandemia, que é trágica, dramática, mas porque ela é muito acentuada e piorada pela nossa condição política”, afirma Farkas. “Fiquei de fato tentando pensar sobre o que está nos acontecendo e como reagir a isso. Repensar inclusive o nosso modo de operar. Acho que há questões tão sérias, tão profundas, que isso tudo nos faz repensar o papel da arte, o papel dessas estruturas e de como elas vinham funcionando.”
Ao anunciar o adiamento da próxima Bienal Sesc_Videobrasil, programada inicialmente para 2021 e que deve ocorrer apenas em 2023, Farkas afirma também que a instituição pretende, a partir de agora, se dedicar com mais afinco a trabalhar com o vasto acervo (especialmente de vídeo) que construiu em mais de três décadas. O movimento está sendo planejado com a criação de uma nova plataforma, o Videobrasil online, que seguirá olhando para a produção do chamado Sul global – termo que se refere à condição cultural, econômica e política de países e territórios à margem da modernização hegemônica e do capitalismo central.
Ao falar sobre essas regiões menos abastadas do mundo, Farkas ressalta também que o atual contexto, com a pandemia de Covid-19, escancara ainda mais as diferenças sociais e econômicas entre os países. “Sabemos que o Sul global é atingido mais duramente por uma crise como essa. As diferenças de fato são expostas.” Por outro lado, diz ela, é possível pensar também que “quando passar um pouco o ápice de tudo isso, talvez a gente esteja um pouco à frente em relação a algumas alternativas e saídas. Pois se essa situação da pandemia se coloca para todo o globo, nós que vivemos em países subdesenvolvidos, em condições subalternas a esse lugar do mundo onde o dinheiro circula, sempre tivemos que lidar com a precariedade e achar alternativas, sobretudo no campo da arte e da cultura”.
O quadro geopolítico no contexto da pandemia foi tema também da conversa com Danilo Miranda, para quem “o que está acontecendo mostra o desequilíbrio e a falta de equidade social no mundo”. Para o diretor do Sesc-SP, “é muito mais grave o que está acontecendo no Brasil do que o que se passou na Europa. Lá foi grave, aqui vai ser gravíssimo. Porque aqui a desigualdade, a pobreza, a miséria e a falta de condições sanitárias são muito maiores”. Para piorar, “temos um presidente que nega absolutamente tudo isso e atua de uma maneira equivocada, totalmente errática, em todos os sentidos. É tão grave quanto um guerra.”
Para além das consequências, Miranda ressalta ainda que as causas que levaram ao quadro atual não estão desconectados do tratamento que o ser humano dá à natureza, ao planeta. “Então a exploração dos recursos naturais levada ao extremo, além de mexer com questões como o aquecimento global, que já é um fato real, tem consequências na vida biológica de um modo geral, na vida dos seres visíveis e invisíveis que estão sobre a terra”, afirma. Neste sentido, diz ele, a crise gerada pela pandemia do coronavírus demonstra a necessidade de um debate muito mais amplo do que pode aparentar: “Não é apenas um problema de saúde, mas diz respeito à economia, às relações humanas, à cultura, à educação e à vida como um todo”.
Em concordância com o diretor do Sesc, Farkas cita escritos recentes do líder indígena Ailton Krenak para defender que após a pandemia não será possível, nem desejável, voltar à vida como era antes. “Não vamos tentar continuar numa normalidade que não existe. Eu acho que tudo isso que está acontecendo não é gratuito. Como o Krenak fala, essa é uma crise da humanidade, do ser humano. O problema não é o mundo, a natureza, os animais. Somos nós. Quem está doente somos nós. E nesse sentido eu acho que os povos originários têm muito a nos ensinar, a nos dizer. ”
O pós-coronavirus
O tema do mundo que virá após tamanha crise para a humanidade perpassou também , de diferentes modos, as entrevistas de todos os gestores. Para Saron, “paradoxalmente, o pós-corona trará uma humanização da sociedade, o que, por sua vez, demandará o fortalecimento da ciência, o avanço da educação e a ampliação do fazer artístico. Nós, que estamos intimamente ligados ao mundo do conhecimento, precisaremos estar prontos para responder à altura este desejo”. Miranda, por sua vez, considera que o “novo normal” exigirá das pessoas que elas sejam mais solidárias umas com as outras. “Não quer dizer que elas serão mais solidárias, mas serão convidadas a isso. Primeiro porque uma ameaça como essa é para todo mundo. Depois, porque você depende totalmente do outro para poder se manter saudável. Então é quase que uma solidariedade obrigatória, indispensável”, explica.
De um ponto de vista das práticas diárias das instituições, para além da intensificação nas atividades virtuais, a realidade que virá deverá exigir alterações nos modos de atuação presencial. “Vamos ter que rever hábitos”, afirma Miranda. “E enquanto não tiver a vacina, como é que vamos juntar gente para ver um filme, um teatro ou um concerto? Então vai ser um desafio enorme do ponto de vista prático, arquitetônico. Como será o novo presencial?”, questiona ele.
Paradoxalmente, Solange Farkas considera que o trágico contexto da pandemia pode ter ajudado as pessoas a prestarem mais atenção a algumas questões e injustiças sociais latentes na sociedade. Perguntada sobre os casos recentes da morte do menino João Pedro, no Brasil, e do americano George Floyd, que desencadearam protestos e debates sobre o racismo estrutural nos dois países, Farkas diz que “o isolamento social fez com que a gente percebesse mais certas coisas. Porque quando você está numa situação de normalidade, as pessoas passam batido por isso, em geral. Não olham para o outro, não olham para essas questões. Mas essa questão da diferença social, do racismo estrutural, do nível e grau de violência contra a comunidade negra, assim como a indígena, isso sempre existiu”.
E por mais que lamente que tenha sido preciso uma explosão da discussão nos EUA para que muitos no Brasil passassem a falar em antirracismo, ela considera que a pandemia está ajudando a “olharmos essas nossas fragilidades enquanto sociedade”. “Acho que nunca foi tão evidenciada como agora essa personalidade brasileira tão racista, tão superficial. E talvez, a partir desse momento, alguma coisa pode de fato começar a acontecer. Acordar as pessoas para essa questão política, para o racismo escancarado, para essa desgraça, essa lástima que é esse atual governo, autoritário, fascista”, completa.
Ao falar sobre essas temáticas políticas historicamente tratadas no Videobrasil – através da produção de artistas negros, periféricos, indígenas e LGBTs, entre outros – Farkas ressalta também que enxerga com cautela um olhar crescente do mercado para o trabalho destes artistas. “Pois não é exatamente a arte, mas é o mercado quem está olhando para esse lugar. E qualquer coisa chancelada pelo mercado, sobretudo esse mercado predador, eu não vejo com bons olhos, não acho saudável”, afirma. “Descobrem esses lugares, percebem que há uma produção potente e que há um momento favorável, em que esses trabalhos vendem, mas não mexem um centímetro para mudar, por exemplo, as condições de produção para esses artistas”. Um dos riscos, deste modo, é uma banalização desta produção, com a criação de rótulos, por exemplo. “Mas os artistas não são bobos. São potentes, são espertos. Muitos artistas, curadores e gestores destes lugares mais à margem são muito politizados, muito articulados. Então eles também ficam com um pé atrás com a gente, por razões óbvias. E eles têm uma consciência do lugar que eles ocupam no mundo.”
Ricardo Ohtake, por sua vez, não deixa de ver com bons olhos essa maior atenção dada pelo mundo da arte à uma produção mais política – incluindo aí o mercado, que tem “se voltado menos para uma arte muito formal e ‘bem feitinha’ e mais para uma arte política”, diz ele. “Porque eu acho que em tempos como os que estamos vivendo temos que mostrar esse tipo de produção, fugir de coisas mais conservadoras”, completa.
Paralelos com um passado sombrio
Os “tempos que estamos vivendo”, no caso, se referem ao momento em que o país tem um “governo que não gosta de cultura e também não gosta das posições progressistas que a cultura costuma ter”, segundo Ohtake. Para ele, que desde jovem se envolveu na luta contra a ditadura militar (1964-1985), o atual governo possui paralelos não só com esse período da história brasileira, mas também com regimes como o fascismo e o nazismo que governaram países europeus na primeira metade do século passado. Isso fica nítido, entre outras coisas, no reaparecimento de tentativas de censura ao trabalho de artistas e instituições culturais.
Miranda, no mesmo sentido, considera “que existem muitas maneiras de fazer censura”, para além do modo de controle que era exercido pelo governo militar. “E uma delas é diminuir, ou eliminar, quem produz algo que possa ser censurado. Então naquela época os artistas produziam e eram censurados. Agora, a ideia é que os artistas não tenham nem como produzir direito, porque não têm incentivos e mecanismos.”
Farkas, que realizou o primeiro Festival Videobrasil em 1983, na última fase da ditadura, ressalta também que algumas experiências vividas naquela época parecem ressurgir, com outras roupagens, no contexto atual. “Parece que estou revisitando, desgraçadamente, um momento que passamos lá atrás. Quando começamos o festival ainda existia um mecanismo de censura do Estado muito forte. E eu fui processada várias vezes por exibir trabalhos que tinham sido censurados.” Já nos dias atuais, ela completa, há um outro tipo de censura, “na medida em que você não pode produzir e não consegue falar o que pensa porque não tem condições para isso”.
A escassez de recursos direcionados às instituições culturais não estariam, neste sentido, desvinculadas de um projeto de governo que exclui a cultura de seu planejamento. Para Farkas, esse processo de desmonte remete ao governo anterior, de Michel Temer. “Se não fosse o Sesc, que eu digo sempre que é a nossa política cultural, a gente não teria feito a bienal desde 2016, porque não há condições para isso”. E com o agravamento da situação por conta do isolamento social, “ou você tem que se reinventar, de fato, ou esperar esse terremoto passar. E nesse sentido a pandemia nos tira totalmente de uma zona de conforto. Eu acho que este momento nos obriga a resgatar um pouco o espírito marginal que permeava a criação artística antes dessa profissionalização toda”.
Segundo Ohtake, as captações no instituto, sem vínculo direto com o Estado, têm sido cada vez mais difíceis e, por isso, o número de mostras anuais deverá ser reduzido. “Porque nós também não temos um padrinho, um patrono, como a maioria das grandes instituições têm”, diz ele. “E o fato de ter um governo como esse atual exige que a gente invente as coisas para fazer. Precisamos ser mais inventivos. Nós temos que achar caminhos, procurar saídas para isso tudo, mas é muito difícil saber o que deve ser feito”, completa. No caso da Pinacoteca, um corte de verbas do Governo do Estado por conta da pandemia implicou na redução da jornada de trabalho e salários dos funcionários e na suspensão temporária de outros contratos. Por enquanto não houve demissões, mas o risco não está totalmente descartado.
Para o Sesc-SP, a ameaça de cortes no sistema S (formado por instituições como Sesc, Sesi, Senai e Sebrae) é uma constante desde o início da gestão Bolsonaro – uma Medida Provisória para a diminuição nos repasses de empresas para o sistema transita no Congresso no período de publicação desta reportagem. “Justamente no momento em que mais se necessita de instituições que lidam com essas questões do debate, da discussão, da informação, da educação e da cultura, para que possamos vencer tudo isso”, diz Miranda.
Saron, por sua vez, considera que a falta de uma política de Estado para a cultura não é algo recente. “Há sete anos que o Fundo Nacional da Cultura, um instrumento importantíssimo na constituição de uma política cultural consistente tem visto, sucessivamente, o seu orçamento ser reduzido, mesmo tendo uma fonte segura de recursos advinda das loterias”, diz. “Outro indicativo de vulnerabilidade nas políticas públicas é o fato de que em 30 anos de existência de um órgão dirigente de cultura tivemos, em média, um responsável a cada 10 meses, com exceção de Francisco Weffort, que permaneceu no cargo por oito anos, e de Gilberto Gil, por cinco anos e meio. Tudo isso sem contar a histórica fragilidade da Funarte, em tese a instituição pública que deveria ser a responsável por fomentar a arte no Brasil.”
Tocando em frente
Mesmo com todos os empecilhos, dificuldades econômicas e políticas, em meio à pandemia de Covid-19, os cinco gestores entrevistados afirmam estar buscando os caminhos possíveis para manter vivas e atuantes as instituições que dirigem. “Então eu acho que cada um vai fazendo seu trabalho, algo que consiga responder a essa situação”, diz Ohtake. E em uma “escala macro”, completa, “nós temos que voltar a construir um projeto de país. E um projeto de país tem a ver com arte, com educação e cultura.” Jochen Volz, por sua vez, relembra a Bienal de São Paulo de 2016, Incerteza Viva, da qual foi curador, para dizer que é preciso “pensar em como abraçar este momento de incerteza. E em vez de se recolher no medo, pensar em como transformar esse momento em ação”. Para isso, a arte pode sempre servir de inspiração: “Acho que é um momento de olhar para as estratégias artísticas novamente e ver como os artistas tem, desde sempre, imaginado o inimaginável”.
Danilo Miranda, apesar de tudo, não deixa de se dizer esperançoso. “Porque cultura é muito amplo. É muito mais sério e mais importante do que qualquer governo possa imaginar. E ela vai existir independente da vontade dos governos, estejam eles favorecendo ou prejudicando. Porque ela é inerente à vida humana. Você vai em qualquer lugar deste país, ou do mundo, estão produzindo cultura. E não só a cultura que se transforma num produto – como uma música, uma literatura -, mas a cultura que é a expressão humana necessária na comunicação, na narrativa, no dia a dia, nas lembranças, na memória. Não existe memória sem cultura. Então não conseguirão destruir isso nunca, nunca. Por mais que tentem.” ✱