Até seis ou sete anos atrás, muito pouca gente em São Paulo – incluindo quem trabalha com cultura – saberia dizer o que era a Casa do Povo. Centro cultural fundado em 1946 por judeus progressistas no bairro do Bom Retiro, o espaço amargurava cerca de 30 anos de crise, com o encerramento de quase todas as suas atividades, e estava mais presente na memória de algumas gerações do que na vida cotidiana de moradores da cidade. O fato é que em muito pouco tempo a Casa vivenciou uma intensa e vigorosa retomada, consolidando-se como centro cultural prolífico e um dos espaços mais abertos à experimentação, ao debate político e às práticas artísticas multidisciplinares na capital. Voltado tanto para a produção contemporânea quanto para a preservação da memória, a Casa do Povo bebeu na sua própria história para ganhar novo fôlego e vida.
Atualmente, frequentar o espaço significa deparar-se com atividades das mais variadas e, ao primeiro olhar, díspares. Pode-se presenciar, dependendo da época, desde um workshop de dança contemporânea até uma aula de jornalismo para jovens de periferia; de uma peça teatral feita por secundaristas até uma feira de publicações latino-americanas; de uma performance artística até treinos de boxe abertos para a comunidade do bairro; de rodas de discussão sobre saúde e autoconhecimento feminino até ateliês de produção de materiais gráficos; de oficinas de tecelagem até atendimentos psicanalíticos gratuitos; de discussões sobre a integração de imigrantes no bairro até o ensaio de um coral tradicional cantado em ídiche; de um encontro sobre alimentação consciente até a própria distribuição de refeições. Pode-se, ainda, consultar uma biblioteca e um vasto arquivo documental, adquirir um exemplar do jornal Nossa Voz, editado pela Casa, ou partir dali com um audioguia para percorrer o bairro do Bom Retiro e conhecer sua história.
Se as práticas são tantas e tão diversas – e a lista acima poderia continuar –, elas não acontecem por acaso, nem são incoerentes com a proposta de um espaço contemporâneo de cultura e arte, como explica o curador e gestor cultural Benjamin Seroussi, diretor da Casa e um dos responsáveis pela retomada. “Por um lado, os artistas pedem para ampliar a noção de arte, não querem se limitar às práticas tradicionais. Eles não entendem a arte como separada de outras esferas de produção e de outras atividades da vida. Por outro lado, a cultura não se limita às artes. Moradia é cultura, culinária é cultura, esporte é cultura”, diz. “Então aqui tem criação, ativismo, gente em situação de vulnerabilidade social. Mas a gente nunca deixa de entender isso como um lugar de arte. Mas um lugar de arte que está tentando experimentar, em escala real, outros mundos possíveis.”
Experimentar outros mundos possíveis era, certamente, o que desejavam, nos anos 1940, os judeus progressistas que fundaram o espaço no Bom Retiro, pouco após a Segunda Guerra e o Holocausto. E é somente através de uma compreensão desta longa história da Casa, fortemente entrelaçada aos acontecimentos políticos e culturais do século 20, que pode-se entender a atuação da instituição hoje. “Porque toda a retomada foi feita a partir de uma releitura da história. Mas não com o olhar do historiador, digamos, mas mais com as técnicas do curador. A ideia não é necessariamente procurar a veracidade factual – não que isso não seja importante –, mas muito mais pensar em como usar, e talvez abusar, desta história no presente”, explica Seroussi.
A história antiga
A história a que o curador se refere remete aos anos 1930 e 1940, quando milhares de imigrantes judeus fugidos da pobreza e perseguição na Europa passaram a habitar o Bom Retiro, no centro de São Paulo, e quando duas narrativas se juntam. De um lado, o surgimento de associações antifascistas – a exemplo do que acontecia em diversos cantos do mundo –, criadas durante a guerra com o intuito de combater o antissemitismo, apoiar a luta dos países Aliados e, ao mesmo tempo, não deixar se perder uma cultura secular judaica. De outro, o desejo de homenagear os milhões de mortos nos campos de concentração nazistas. “Poderia ser feito um memorial, uma escultura, com os nomes, onde se colocariam flores uma vez por ano. Um gesto de lembrança e pronto”, comenta Seroussi. O que foi feito, no entanto, foi um “monumento vivo”, um espaço que reunia as associações antifascistas – como o jornal Nossa Voz e o Clube da Juventude – e ao mesmo tempo homenageava os mortos. “As duas narrativas se encontram: o centro cultural e o memorial. Então é um espaço de memória, mas um lugar onde lembrar é agir. Um lugar onde a história não está escrita na parede, mas está inscrita nos corpos e na arquitetura, e cabe a nós ativá-la.”
Com projeto de Ernest Mange – arquiteto que trabalhou com Rino Levi e Le Corbusier – a Casa ganhou sua sede em 1953. Com três amplos pavimentos quase sem divisórias e um terraço, o edifício modernista na Rua Três Rios se firmou como polo cultural e espaço de atuação política. “Faz muito sentido o Mange ter desenhado um prédio com essas plantas livres, que permite que se possa adequar os espaços. Imagino eu que ele deve ter pensado que o melhor prédio para recordar é aquele no qual cada geração inventa suas maneiras de lembrar. Porque a gente nunca sabe como é que, amanhã, vamos lembrar de ontem”, diz Seroussi. O espaço passou a abrigar também o Ginásio Israelita Brasileiro Scholem Aleichem, escola infantil de educação renovada (linha pedagógica humanista semelhante ao construtivismo) e, em 1960, inaugurou em seu subsolo o Teatro de Arte Israelita Brasileiro (TAIB), projetado pelo arquiteto Jorge Wilheim.
Com o golpe de 1964 e a instauração do regime militar, a Casa do Povo adentra um período conturbado de sua história. Enquanto o jornal Nossa Voz foi fechado pelo governo, a escola acolhia cada vez mais filhos de perseguidos políticos (incluindo muitos não judeus), que ganhavam bolsas e, se necessário, nomes falsos. Professores chegaram a ser presos e torturados e a Casa se tornou um polo de resistência à ditadura, especialmente através das atividades do TAIB. Nele foram encenadas peças do Teatro de Arena – de autores como Plínio Marcos e Augusto Boal – e do Teatro Popular do Sesi, entre outros. Ao mesmo tempo em que as apresentações lotavam o teatro e a escola seguia funcionando, muitos membros da comunidade judaica se afastaram, por medo de perseguição ou discordância ideológica, e as dificuldades financeiras aumentaram.
“A partir dos anos 1980 a Casa do Povo perde o inimigo – a Ditadura –, o amigo – o bloco socialista – e a base social – os judeus que saem do bairro e muitas vezes se afastam da esquerda”, resume Seroussi. Em 1981 o colégio encerra suas atividades, esvaziando ainda mais o espaço, em um período que o centro da cidade também vive um crescente abandono por parte das elites e do poder público. Se a Casa não fechou totalmente suas portas, sendo mantida pela atuação quase heroica de alguns associados, ela adentrou um longo período de crise que só acabou na década atual.
A história recente
Foi mais ou menos essa a história contada à Seroussi em 2011 – certamente com mais detalhes e emoção – pelas mulheres que seguiam indo à Casa todas as semanas cantar em ídiche no Coral Tradição. Foi neste período que o curador, após anos de trabalho no Centro da Cultura Judaica, começou a se aproximar da Casa, situada em um bairro agora majoritariamente coreano e boliviano e com seu edifício bastante degradado. “A Casa não estava fechada. Essas mulheres mantiveram, heroicamente, ela viva, mas funcionando na medida do possível”, conta Seroussi, referindo-se a figuras como Hugueta Sendacz, hoje aos 92 anos e ainda maestrina do coral. Na mesma época, em decorrência do lançamento do livro Vanguarda Pedagógica (2008) e de uma mobilização através das redes sociais, um grupo de ex-alunos do Scholem também passou a se envolver com a Casa e a debater o futuro do espaço.
Foi a partir de 2012, com um novo conselho – que já incluía Seroussi – e uma equipe embrionária que as coisas começaram a mudar. “Não tinha grana nem funcionários, mas eu lembro de pensar: com esse lugar, essa história, essa arquitetura e sem pagar aluguel, ou eu consigo fazer as coisas acontecerem ou eu troco de profissão”, brinca. “E a gente resolveu fazer do mesmo jeito que foi feito lá em 1953. Ou seja, colocar grupos para usar o espaço. Veio um grupo de moda, um de design gráfico, um de ativismo urbano. E hoje temos 25 grupos ou coletivos usando a Casa”. Dessa vez, não mais pessoas ligadas à coletividade judaica, mas das mais variadas origens, transformando a instituição em um espaço de encontro e convívio entre diferentes. “Se o judeu é o outro, por excelência, uma casa judaica tem que ser aberta a todos os outros. Tem que ser um espaço da alteridade radical, aberta à população trans, à população negra, indígena e aos imigrantes do bairro.”
A partir de um questionamento sobre o que deveria ser um centro cultural do século 21, e mais especificamente naquele espaço, três grandes eixos de trabalho foram definidos. O primeiro, gedenk (“lembre-se”, em ídiche), orienta a atuação da casa como espaço de memória viva, que conta a história de resistência dos grupos que por ali passaram, mas procura trazer essa história para as práticas do presente e ideias de futuro. O segundo eixo, tsukunft (“futuro”) ressalta o papel experimental da casa e o desejo de fazer dela um espaço para se pensar novas práticas artísticas e multidisciplinares. O terceiro eixo, farain (“associação”), se refere a como os dois primeiros eixos poderiam ser trabalhados, ou seja, através da ação de coletivos, movimentos autônomos e associações de bairro que passaram a habitar a Casa, convivendo entre si e utilizando os espaços de modo flexível.
Os três eixos se relacionam diretamente com uma questão incontornável, segundo Seroussi: “Aqui estavam grupos de uma vanguarda política. Foi construído um prédio de arquitetura modernista, tinha uma escola experimental e um teatro brechtiano. Então a Casa nos condena a ousar. Ela nos pede para fazer diferente”. Diferente, inclusive, do que se fazia ali nos anos 1940 e 1950, em um contexto radicalmente diferente. “Quando a Casa abriu havia dois ou três centros culturais na cidade. Hoje só o bairro tem a Pinacoteca, a Oficina Cultural Oswald de Andrade, o Sesc Bom Retiro, a Sala São Paulo, o Teatro Porto Seguro, o Museu de Arte Sacra e o Teatro de Container. Então a gente ia fazer mais um lugar com exposições, temporada de teatro e shows? Não, quisemos fazer outra coisa”, explica. “Até porque esses espaços são fundamentais, mas acho que não dão conta de uma série de práticas artísticas contemporâneas. Porque eu acho que muitas vezes eles separam um tanto a cultura das outras esferas da vida.”
Hoje, com os coletivos e uma programação dividida entre o que a Casa organiza e o que ela acolhe, o orçamento anual passou dos R$ 60 mil, em 2011, para R$ 1,2 milhão, captados entre leis de incentivo, editais, contribuições dos grupos e associados, locações e um evento anual de arrecadação – como o show de Caetano Veloso em 2018. A biblioteca da instituição, após 40 anos fechada, foi reativada no último mês de maio, representando mais um grande passo para a Casa no sentido de retomar sua história e, ao mesmo tempo, se abrir à sociedade. “Já passaram por aqui várias gerações, inclusive muitas pessoas que já morreram, mas a gente tem esse acervo, esse arquivo, que é o núcleo duro da Casa, que conta sua história”, diz Marilia Loureiro, curadora e programadora da instituição. O próximo passo é a restauração do TAIB, hoje bastante degradado, em um planejamento que já está em estágio avançado.
O jornal Nossa Voz, símbolo da instituição, foi relançado em 2014 e é publicado anualmente com textos sobre temas atuais e colaborações de artistas e intelectuais. No último número, de 2018, a capa estampa o Manifesto Herzog Vive!, publicado pelo grupo Judeus pela Democracia no período das eleições em reação à ascensão conservadora e à possibilidade da eleição de Bolsonaro. Na página seguinte, a transcrição da fala feita pelo escritor israelense Amós Oz em junho de 2017, quando esteve no local, evidencia um pouco do espírito – passado e presente – da Casa do Povo: “Eu realmente me sinto em casa. Aqui é o lugar certo para começar uma revolução, ou, pelo menos, como disse minha amiga Lilia Schwarcz, o lugar certo para planejar a revolução. Porque é sempre mais agradável planejá-la do que executá-la”, brincou. Se não será o epicentro da revolução, a Casa é, retomando a afirmação de Seroussi, um lugar para se ensaiar outros futuros possíveis. “E tudo que acontece aqui hoje confirma que os nossos desejos não eram loucura”, conclui o curador.