Fachada do Humboldt
Fachada do Humboldt Forum, em Berlim. Foto: Alexander Schippel / Stiftung Humboldt Forum im Berliner Schloss

Em 2021 a cidade de Berlim ganhou um novo espaço de debate a respeito da cultura, que trouxe também uma enorme responsabilidade histórica e demandas presentes: o atual Humboldt Forum, construído no local do antigo Palácio da República (1976-2003), anteriormente ocupado pelo Palácio Berlinense (1443-1950). Trata-se de um local que, por sua centralidade política, geográfica e simbólica já reflete há bastante tempo a identidade alemã. Hoje, o museu e seus espaços expositivos têm sua articulação sincronizada usando as coleções dos Museus Estatais de Berlim (Staatliche Museen zu Berlin), da Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano (Stiftung Preußischer Kulturbesitz), em parceria também com a Projetos Culturais Berlim (Kulturprojekte Berlin) e o Museu da Cidade de Berlim (Stadtmuseum Berlin).

Após sérios danos sofridos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o Palácio Berlinense foi demolido para dar espaço a um novo prédio que indicaria o renascimento em uma nova era, e não apenas em pressupostos arquitetônicos. O Palácio da República, projetado por Heinz Graffunder e sua equipe de arquitetos, Karl-Ernst Swora, Wolf-Rüdiger Eisentraut, Günter Kunert, Manfred Prasser e Heinz Aust, foi construído em 1976 e funcionou até 1990, quando então o seu funcionamento foi interrompido por conta do uso de amianto no sistema de isolamento contra fogo. O prédio continuou funcionando parcialmente e sendo habitado mediante aprovação em ocasiões especiais, e após 2004 deu espaço à um projeto intermediário para a criação de eventos culturais sob o nome de Palácio do Povo (Volkspalast), até ser demolido em 2006. Em 2000, no entanto, já havia sido formada uma comissão para examinar a futura utilização do espaço em uma nova fase e em 2002 o projeto de retomada da fachada barroca do antigo Palácio Berlinense foi aprovado – o edifício agora seria habitado pelas coleções listadas anteriormente. Após tantas mudanças e um projeto que se estendeu e custou mais do que se tinha imaginado, somando mais de 600 milhões de Euros, o Humboldt Forum é o edifício cultural mais caro da história da Alemanha. O Palácio Berlinense, que teve sua fachada redesenhada em estilo barroco pelo arquiteto alemão Andreas Schlüter no século 17, ganhou uma nova leitura do italiano Franco Stella, ganhador do concurso para o projeto do novo edifício, e foi reaberto em 2021 para visitação com uma área expositiva de aproximadamente 28 mil metros quadrados.

Um dos objetivos atuais da instituição é de significativa dificuldade: abrigar as coleções de arte “etnográfica”[1] adquiridas durante o passado colonial alemão entre 1885, com a Conferência de Berlim[2], até a atualidade, e se posicionar criticamente através dos objetos de cultura material exibidos. Essa premissa, junto com a retomada da fachada do Palácio Berlinense, abriu grande resistência e protestos da comunidade artística e cultural – essencialmente cosmopolita e pluricultural de Berlim. Com livre visitação através de ingressos com hora marcada e sem custos, a exposição de longa duração que abre o edifício para o público é intitulada Museu Etnológico e Museu para a Arte Asiática (em tradução livre do alemão), mostra dividida em diversos segmentos.

Como se já não bastasse o forte gesto – bastante anacrônico – de se trazer à contemporaneidade a fachada barroca do período imperial alemão, as exposições, na tentativa de instruir e educar o público de Berlim, expressam ativamente o desejo de corresponder aos interesses do país europeu. Dois terços dos objetos da coleção etnográfica alemã são provenientes dos tempos coloniais e foram colecionados com o “intuito de se ter material básico para pesquisas futuras”. No entanto, mesmo que o armazenamento desses objetos seja bastante trabalhoso e demande extensivo financiamento, e mesmo que pesquisas sobre sua proveniência sejam incentivadas pelo Humboldt Forum em parceria com instituições e pesquisadores de suas áreas do local de produção desses objetos, trazê-los para o contexto museológico europeu ignorando as suas qualidades adicionais, que extrapolam o seu peso estético, contribui para a atual complexidade social dos países dos quais foram tomados. Ignora-se o contexto e proveniência original dos objetos para se considerar apenas a sua utilidade à cultura estrangeira que os abriga, como se pode ler em alguns dos textos da exposição: “A seleção dos objetos expostos não pretende definir, homogeneizar ou delimitar as culturas. Ela não oferece uma visão geral da história cultural, mas reflete interesses europeus e alemães, inclinações estéticas e orientações científicas no passado e no presente”[3].

A exposição Uma questão de perspectiva (tradução livre), a qual recebe os visitantes no Museu Etnológico, é bastante interessante justamente porque lida com arquivo e não com objetos. Com diversos eixos, oferece uma reconstituição do passado colonial alemão no século 19, incluindo a relação da Alemanha Oriental com as suas colônias através de relatos nativos e conta com miniaturas representando os ocupantes através do olhar local[4]. No complexo expositivo de imagem, texto e vídeo, o visitante autônomo tem de se engajar fisicamente para descobrir informações e fotos e assim reconstituir, ou “revelar”, as dinâmicas coloniais. Fica-se claro que o colonialismo é uma tática de dominância que considera apenas o espaço físico, ao passo que ignora os espaços sociais e culturais anteriormente cultivados no local de ocupação. Por exemplo, uma das fotos mostra a escola das Mulheres da Federação Colonial Alemã (uma organização oficial do Estado alemão), que tinha como objetivo “tratar o espírito familiar alemão e seu tipo”, trazendo mulheres para as colônias para que os soldados e ocupantes alemães não se casassem com mulheres africanas[5].

Trono "Mandu Yenu" (Camarões, antes de 1885) no módulo "Emaranhados Coloniais" do Humboldt Forum
Trono “Mandu Yenu” (Camarões, antes de 1885) no módulo “Emaranhados Coloniais” do Humboldt Forum. Foto: Alexander Schippel / Staatliche Museen zu Berlin, Ethnologisches Museum / Stiftung Humboldt Forum im Berliner Schloss

Outro exemplo que prima pela ausência de contato entre colonizador e colonizado foi o Gauturnfest 1939 em Lüderitzbucht (Namíbia), que levou jovens alemães para competir na colônia, onde permaneciam isolados dos habitantes locais durante o torneio. No eixo Vida Entre Culturas é abordada a história dos jovens namibianos, filhos de exilados e refugiados que foram criados na Alemanha Oriental durante a Guerra da Independência da Namíbia (1966-1990) entre 1975 e 1990. O conflito foi também ultimamente um desdobramento da divisão da África pelos países da Europa na Conferência de Berlim (1884-1885). Mais tarde, com o final da guerra, os jovens namibianos foram repatriados pelo Estado independente da Namíbia, o que causou um significativo choque cultural.

Objetos africanos

Posterior à relativização das perspectivas apontada pela estrutura expositiva anterior, o próximo ciclo dentro da exposição é o Armazém Aberto África, que reproduz o modo de armazenamento da coleção expondo os objetos em vitrines, acompanhados de seus números de identificação. Estão ali armas, facas, espadas, adornos de marfim, brincos, braceletes, representações de espíritos e estátuas de significação política representando governantes de variados tamanhos, instrumentos musicais como tambores e instrumentos de sopro. Madeira e metal, cordas, conchas e marfim são os principais materiais, esculpidos e compostos com notável técnica. Fica-se evidente que a subtração desses objetos de seus lugares de proveniência é primeiramente um desvio do trabalho, não somente dos feitores dos objetos, mas também de todo um povo que passava seu conhecimento de trabalho de geração em geração por um sistema de ensino hereditário ou de tutor para pupilo. Os objetos acumulados aqui são provenientes de diversas expedições ao território africano do final do século 19 e a sua exibição na Europa influenciou diretamente a arte moderna[6]. Estas expedições foram conduzidas por oficiais da Alemanha colonial tal qual Hans Glauning, que morreu em uma de suas expedições em Camarões.

A relação de Camarões com a Alemanha é posta em foco no próximo segmento expositivo, através de batentes de portas esculpidos à mão, esculturas de diversos tamanhos, apetrechos, bancos, máscaras adornadas e outros objetos históricos. Grande parte dos itens denotam o grau de importância de seus detentores na sociedade camaronesa do início do século passado, além de adereçar o caráter da pessoa que os possuía. Estes objetos, carregados com agência social e espiritual, também tinham finalidade e efeito político. Exemplo máximo disso é o Trono Comemorativo do Rei Tufoyn, do povo Bekom, datado do século 19 e cujo desaparecimento gerou estado de emergência, já que sua presença era necessária para que se pudesse passar o poder ao próximo governante da matriz hereditária. O trono foi adquirido em 1906 pelo explorador alemão Hans Gaspar Ganz zu Putzliz. Para evitar uma crise no poder e na sucessão, o Rei Yuh, sobrinho e sucessor de Tufoyn, ordenou a criação de um novo trono, hoje em dia considerado como original, enquanto que o que se encontra na Europa foi expropriado de seu caráter oficial. As técnicas de dominação cultural motivadas pelo fetichismo estrangeiro refletem diretamente na desestabilização política das culturas as quais pretenderam dominar.

A Oceania e a cultura dos mares

A coleção de objetos de cultura material das antigas colônias da Oceania também faz parte da exposição. Uma sala foi dedicada para abrigar uma coleção de adereços e o último navio construído pelos habitantes da ilha Luf, na Papua Nova-Guiné, em 1890 – já que todos os outros foram destruídos na guerra pelos alemães. Após a guerra, este último navio foi comprado por uma companhia de comércio alemã, que o trouxe à Berlim. A proibição da livre locomoção imposta pelos ocupantes ao povo de Papua Nova-Guiné também contribuiu para a extinção das técnicas de construção de barcos que tinham importância singular na economia da região, uma vez que eram trocados por outros tipos de bens em um sistema de escambo. A união entre povos nativos e a natureza fica evidente não só pela relação direta com o mar, entendido como extensão de seu território tanto quanto o solo, mas também porque sabiam lê-lo, encontrando caminhos através de suas correntes e usando seus materiais. O mar tem papel central na tradição oral e na conexão com deuses e ancestrais. A alienação do modo de produção de barcos, além da proibição de locomoção, bem como as doenças trazidas pelos europeus e a destruição causada pela guerra, fizeram com que a autonomia do povo da Polinésia morresse completamente. Na Micronésia e Melanésia o conhecimento de construção naval também foi quase completamente extinto. É importante frisar que o produtor de barcos era também dotado de autoridade espiritual e, portanto, podia fazer rituais acessando poderes sobrenaturais, tendo um papel central na sociedade. Atualmente a construção de barcos é lentamente retomada pelo povo da região da Polinésia através do modelo deste último barco que se encontra em posse alemã.

Em outra sala é exposto o Armazém Aberto Oceania, com diversas vitrines que apresentam a cultura material vinda da Oceania ocupada pela Alemanha. Aqui também se trata de uma coleção formada por diversas expedições e em diferentes regiões. Assim como nas sociedades africanas, as esculturas aqui tinham o poder de organizar a sociedade, sinalizar funções sociais gênero-distintivas e motivar através da espiritualidade comum e dos rituais de passagem e celebrações. São um exemplo as esculturas usadas nos rituais Malagan, que tinham diversos significados e funções, sendo utilizadas com objetivos espirituais como a conexão com ancestrais e também funções práticas, tal qual a transmissão de direitos à terra.  Por serem considerados espíritos perigosos e poderosos, as esculturas eram utilizadas somente uma vez e destruídas após o ritual. A coleção e exibição destes objetos desconsidera e desrespeita a sua concepção e função cultural. Imagens espirituais chamadas de Tikki, nas Ilhas Marquesas, tinham a característica de carregar um espaço com propriedades sagradas onde somente o alto sacerdote poderia adentrar. Este espaço e os rituais conduzidos ali formavam o centro da vida espiritual e a proximidade com os Tikki dotava ao sacerdote mana. Essa energia sobrenatural dava-lhe poder que poderia ser usado para diversos fins, como por exemplo arruinar pessoas ou abençoar ao povo antes de uma batalha, o que os tornava líderes de alto escalão. Através da imposição do cristianismo, hoje religião que representa 90% dos habitantes de Papua Nova Guiné, diversas partes da tradição local morreram. Assim como nas antigas colônias africanas, o padrão de dominação através da separação entre um povo e os seus objetos de cultura e culto também se fez presente.

Tempos coloniais

Este seria o momento ideal para países detentores de objetos de cultura material de outros povos e regiões, como a Alemanha, iniciarem uma verdadeira reparação ética do ponto de vista cultural em relação aos países que sofreram a imposição de relações coloniais notadamente unilaterais e extrativistas. A função atual poderia ser classificada como antiética, já que a Alemanha continua a se beneficiar destes bens sem realmente oferecer algo de valor equivalente aos demais países de proveniência, cuja ausência desses objetos mudou completamente a auto-percepção das diferentes culturas. Trata-se de uma instituição que minimiza o valor dos objetos que se propõe salvaguardar, reduzindo sua importância ao valor estético, e nega, no escopo macro-político, que estes objetos também tragam outras dimensões de poder, para que não seja necessária a imediata devolução destes patrimônios. A falta de acesso dos povos de origem a estes objetos não só contribui para um senso de identidade deficitário, mas também permite ao antigo ocupante controlar a história dos países anteriormente ocupados. O Humboldt Forum está para as ex-colônias da Alemanha assim como o museu russo Hermitage está para a Ucrânia – objetos foram tomados do país por combatentes nazistas e depois retornados à União Soviética após o fim da Segunda Guerra. Ao retirar símbolos culturais com diversas funções do seu local de produção procura-se manter as outras culturas subjugados através de cisões no tecido social, tática colonial que tem como produto final o ganho de tempo para que o fantasma do fascismo – que muitos países possuem em suas dinâmicas políticas e no caso da Alemanha se encontra ativo, ainda que seja minoria – se aproveite caso seu projeto venha a se concretizar.

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[1] Outras instituições com o mesmo tipo de coleção como o Museu Grassi (Leipzig, Alemanha) tem se posicionado criticamente a respeito da classificação “etnográfica”, uma vez que este nome produz comparações entre produções culturais materiais de diferentes contextos.
[2] A conferência de Berlim dividiu a África entre os países da Europa ocidental, gerando o sua atual divisão territorial, a qual desconsidera os diversos povos e culturas africanas.
[3] Trd. “Die Auswahl der Exponate erhebt nicht den Anspruch, Kulturen zu definieren, zu homogeneizieren, oder voneinander abzugrenzen. Sie bietet keinen Kulturgeschichten Überblick, aber sie spiegelt europäische und deutsche Interessen, ästhetische Neigungen und wissenschaftliche Ausrichtungen in der Vergangenheit und Gegenwart wieder”. (Humboldt Forum, 2022, tradução nossa).
[4] Na exposição existe um foco na relação com os seguintes países: Camarões, Namíbia, Papua Nova-Guiné, Samoa-Alemã e Tanzânia. No entanto, a Alemanha possuía muitas outras Colônias antes da Primeira Guerra Mundial (1939-1945).
[5] Trd. Den deutschen Familiengeist und die deutsche Art zu pflegen. (Humboldt Forum, 2022, tradução nossa).
[6] Uma das maiores commodities do mercado secundário são as obras de Pablo Picasso, que era colecionador de arte africana.

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