Com um acervo de cerca de 3 mil obras, que inclui grandes nomes da fotografia mundial como Man Ray, Otto Stupakoff, Marc Ferrez, Miguel Rio Branco, Robert Capa, Maureen Bisilliat, Claudia Andujar, Henri Cartier-Bresson, Jean Manzon, Pierre Verger, Nobuyoshi Araki, Margaret Bourke-White e Cindy Sherman, entre muitos outros, o Museu da Fotografia Fortaleza (MFF) já surgiu, em 2017, como o maior museu do país exclusivamente dedicado à fotografia. Sede da coleção Paula e Silvio Frota, localizado em um imponente edifício contemporâneo na cidade cearense, o local se tornou ponto de visitação da cidade, atraindo turistas do Brasil e do mundo.
O grande orgulho de seu criador e diretor, o empresário e colecionador Silvio Frota, no entanto, é o trabalho educativo feito pela instituição cearense. “O museu é quase só uma ancora, porque o nosso foco principal é a parte educacional.” De fato, impressiona a amplitude e dedicação de uma instituição que, mesmo sem financiamento público, leva diariamente à sua sede cerca de 200 crianças de escolas públicas, faz trabalhos em comunidades carentes, promove oficinas diárias, realiza trabalhos educativos em diversos hospitais, asilos e unidades correcionais (o equivalente às prisões para menores) e promove sessões de cinema semanais. Tudo é oferecido gratuitamente, inclusive o transporte que leva e traz as crianças.
“Nós decidimos ir até as comunidades para trazer as pessoas mais carentes. Porque se for esperar o poder público fazer isso, infelizmente não faz, e nós já tentamos várias parcerias”, diz Frota. “Pois a Cultura sempre foi o patinho feio, porque não dá voto”, constata. O museu, que fechou as portas em março por conta da pandemia, havia acabado de reformular a mostra permanente, agora com curadoria de Diógenes Moura (a primeira montagem era de Ivo Mesquita), e reabriu no último mês com mostra temporária de Bob Wolfenson.
Frota lamenta a pausa no trabalho educativo, citando as mais de 60 mil crianças que deveriam ter sido atendidas em 2020. Mas afirma que o fechamento era necessário para não colocar em risco público e funcionários – são mais de 50, ao todo, sendo 21 educadores. Em entrevista à arte!brasileiros, o diretor lamenta a falta de investimento no museu, especialmente público, mas também privado, assim como a falta de um olhar para a cultura no país. Empresário bem-sucedido na área da construção civil, ele arca sozinho com cerca de dois terços do orçamento do MFF. Fala também da desigualdade regional entre o Nordeste e as regiões ao sul do Brasil, ressaltando que empresas e bancos que lucram em estados como o Ceará investem em cultura apenas nessas regiões ao sul. Leia abaixo a íntegra da conversa.
ARTE!✱ – O Museu da Fotografia de Fortaleza abriu as portas no início de 2017 e é um espaço bastante singular no cenário nacional. Para começar, gostaria que você contasse um pouco como surgiu esse projeto, qual o processo que culminou na construção do museu.
Eu sou colecionador de pintura há muito tempo, desde os anos 1980. E nunca tinha olhado para a fotografia. Há cerca de 11 anos eu estava em Houston e fui ver uma exposição do Steve McCurry, na qual gostei especialmente de duas fotos. Uma era a da garota afegã. Quando voltei para o hotel eu comecei a pensar porque é que eu nunca tinha me interessado por fotografia, sendo que eu inclusive tenho um filho fotógrafo. Pouco tempo depois fui para Nova York, e aí já comecei a olhar com mais atenção, ir a museus para ver fotografia, e comecei a frequentar leilões especializados. Então eu passei a comprar em uma velocidade muito grande, e quando a coleção atingiu um tamanho substancial, achei que não era justo ter um acervo como esse e as pessoas não terem acesso. E aí nós começamos a pensar em um espaço. Não ainda em um museu. Só que quando você começa a pensar, o sonho vai aumentando, e acabamos fazendo um museu. O MFF tem 2.500 m2 de área, em cindo pisos: três de exposições, um de auditório e recepção e o subsolo para a parte administrativa.
ARTE!✱ – Queria que você falasse um pouco então desse acervo do museu, que tem obras importantíssimas de fotógrafos nacionais e estrangeiros. Existe um foco principal, pensando em recortes temáticos ou de época, ou tudo pode entrar nessa coleção?
Eu comecei comprando sem me preocupar, adquirindo o que eu gostava. Quando a gente começou a pensar na questão do museu, aí eu comecei a visitar os grandes museus no mundo para ver como era a parte de fotografia desses museus. Fui ao Moma, ao Met, na Tate, entre outros. E vi que tinha uma coisa que me incomodava: se não fossem fotos icônicas, as pessoas passavam muito rápido. E comecei a pensar qual era a maneira que eu tinha de prender essas pessoas no museu. Uma das maneiras que eu vejo é através do fotojornalismo. Então passei a comprar fotos deste tipo. E elas, ao menos no início, costumavam introduzir a exposição, porque quando as pessoas veem a realidade, a sua realidade, a sua história, elas se atentam mais. E depois, quando chegam em outras obras, fotos mais de arte, percebem que toda foto tem uma história por trás. De qualquer modo, o que eu estava dizendo é que hoje quando eu compro, faço pensando mais no meu público, não apenas no meu gosto pessoal. Então como gestor, não apenas colecionador, você vai aprimorando o seu olhar, e entendendo como vai lidar com o público.
ARTE!✱ – Existe uma separação entre o que é seu acervo particular e o que está no acervo do museu? Como é essa essa relação?
Nós não somos uma fundação, somos um instituto. É o Instituto Paulo e Silvio Frota, que é um instituto que faz também outros projetos nessa área de difusão da cultura e da arte, de ajuda às pessoas. A coleção inteira está em comodato ao museu. Pertence à pessoa física, mas está em comodato.
ARTE!✱ – E vocês têm sempre uma mostra permanente e as mostras temporárias…
Temos três andares de exposição, dois para a mostra permanente e um de mostras temporárias, que mudamos a cada três meses com novas exposições, tanto de fotógrafos nacionais quanto estrangeiros. Temos também palestras semanalmente, oficinas diariamente, sessões de cinema de arte.
ARTE!✱ – Como são pensadas essas mostras? São fruto de trabalho curatorial do próprio museu ou são trazidas de outras instituições?
Sempre trazemos um curador de fora. Por exemplo, em março, pela primeira vez nós mudamos a exposição da coleção permanente, que estava desde 2017, com curadoria feita pelo Ivo Mesquita. E agora eu convidei o Diógenes Moura, que fez um novo recorte, o olhar dele na coleção permanente. Foi uma pena porque uma semana depois da abertura tivemos que fechar o museu, por causa da pandemia. Então em geral nós convidamos curadores do Brasil e do exterior para fazer curadorias.
ARTE!✱ – E um grande destaque da instituição é o seu trabalho educativo, que é realmente muito forte e feito para além das portas do museu. Você poderia contar um pouco sobre os projetos?
No primeiro dia em que abrimos já começamos a trabalhar na parte educacional. O que é uma coisa rara, porque em geral se espera alguma maturação do museu, até porque o educativo é uma coisa muito cara. Mas não queríamos que o museu fosse estático, como muitos são. Então nós vamos de encontro a comunidade. Hoje – quer dizer, antes da pandemia -, nós trazemos de 200 a 250 crianças por dia. Nós é que pagamos o ônibus – não o município ou o estado, como deveria -, e a entrada é gratuita. Sempre crianças de escolas carentes. Mas nós trabalhamos também dentro das escolas públicas. Nós atendemos duas escolas pela manhã e duas pela tarde, estamos dentro dos currículos delas. Além disso, trabalhamos semanalmente dentro das unidades correcionais, masculinas e femininas, que é um trabalho bastante desafiador.
E também atuamos em uma série de hospitais, com equipes nossas que vão para esses locais. No ano passado nós fizemos uma parceria com o Hapvida, que é um plano de saúde. Nós já atendíamos, com o educativo, cinco hospitais deles, e aí outras unidades de outros estados souberam e pediram para levarmos esse trabalho. Então nós mandamos equipes para Belém, Natal, Recife, Salvador e Feira de Santana, para trabalharem nos locais e ensinarem pessoas de cada lugar a desenvolver esses projetos. O foco nos hospitais é com crianças, mas nós trabalhamos também com asilos de idosos.
E temos trabalhos com crianças de um a quatro anos de idade, que aí é pareceria com a prefeitura – mas mais uma vez quem paga somos nós, inclusive o transporte para levar para o museu. Trabalhamos também em orfanatos, com pessoas com deficiências (cegos, pessoas com síndrome de down, autistas etc), semanalmente. Isso é o que estou lembrando agora, mas tem mais coisas. O trabalho é gigantesco.
ARTE!✱ – Me parece que isso tem a ver com uma ideia de que o museu não deve ser um lugar apenas de contemplação, mas de participação. É por aí?
Claro. Uma das coisas que perguntam, por exemplo, é o porquê de estarmos levando crianças de um a quatro anos. Porque a gente quer habituar essas crianças desde pequenas a estarem dentro de um ambiente cultural. Então fazemos trabalhos diferentes de acordo com a idade. Já nas escolas, por exemplo, começamos ensinando as crianças a fabricarem a máquina Pinhole. Aí eles fotografam o dia a dia deles dentro da comunidade, depois a gente ensina a revelar, e aí eles fazem uma exposição dentro de suas comunidades. Quando chega o fim do ano a gente faz uma mostra deles dentro do museu, o que é uma coisa linda. Hoje são milhares de crianças. Em 2018 atendemos 98 mil crianças e em 2019 foram 60 mil.
ARTE!✱ – Você sente que de alguma forma todos esses trabalhos vêm para suprir carências do estado?
Olha, isso é uma coisa que acontece no Brasil inteiro. Até São Paulo, que é muito mais rico que o Ceará, tem esse problema, a população carente quase não frequenta os museus. Mas em Sao Paulo, ou mesmo no Rio, você tem um público muito maior nesses lugares, isso é fato. Inclusive, qualquer brasileiro ou estrangeiro que vai para São Paulo vai em alguns museus. E é algo complicado aqui em Fortaleza, sinto que os pais nem pensar em levar os filhos ao museu. Mas quando vão para outras cidades, para o exterior, aí sim, vão ver os museus. E então nós decidimos ir até as comunidade, e nós trazemos as pessoas mais carentes. Porque se for esperar o poder público fazer isso, ele não faz, e nós já tentamos várias parcerias que não deram certo. Nem ônibus para levar crianças ao MFF eles cedem.
ARTE!✱ – Nesse sentido, como é o financiamento do museu para dar conta de tantos projetos?
Nós temos um terço que vem de parcerias e os outros dois terços nós bancamos do nosso bolso. Porque infelizmente as empresas não se preocupam muito com isso também, com algumas exceções. Mesmo tendo impostos com a lei de incentivo, são poucas as empresas que disponibilizam verbas. Vou te dar um exemplo. Vários bancos, mesmo tendo muitas agências no estado do Ceará e no Nordeste, não investem em cultura aqui. Esse dinheiro que sai daqui vai financiar Lei de Incentivo no Sul e Sudeste do país, não no Nordeste. E isso é um absurdo. Eles deveriam financiar – pelo menos proporcionalmente à arrecadação que eles têm aqui – a área cultural do Nordeste, que inclusive é muito mais carente. E isso acontece com todos os bancos, muitas empresas etc.
ARTE!✱ – Falando sobre esse desequilíbrio, me parece que o MFF, apesar de ser reconhecido, tem muito menos destaque nacional do que mereceria, dado seu acervo, exposições e atuação. Você acha que isso se deve à sua localização no Nordeste do país?
Isso é uma coisa clara. Por um lado, eu não posso reclamar, porque a mídia do sudeste inclusive, jornais, canais de TV etc, sempre nos deram destaque, nos ajudaram muito. Mas é obvio que uma coisa é estar nas regiões do Sul, outra é estar no Nordeste.
ARTE!✱ – Bom, esse ano vivemos uma pandemia, uma situação sem precedentes. Enfim, como foi isso para o museu. O que foi possível fazer, como foi o trabalho no meio digital?
Nós tínhamos acabado de abrir duas exposições e fechamos em março. A permanente, como eu te falei, e uma temporária do Bob Wolfenson, que reabriu agora e vai ficar até o início do ano. Nós reabrimos com elas há cerca de um mês, mas infelizmente não estamos fazendo nenhum trabalho educacional, porque eu não vou comprometer nem o nosso pessoal, nem os outros. Nos trabalhos em hospitais, com crianças, não tem como. Então esse é um ano quase morto nesse sentido. Mas estamos fazendo um trabalho através das redes sociais, que diariamente reinventamos. Mas não é a mesma coisa. Esse, inclusive, era um ano em que iríamos levar o museu para o interior. Porque se a capital, Fortaleza, é muito carente de cultura, imagine o interior do Ceará, que é muito pobre. E já estava tudo programado para isso, fazermos exposições em outras cidades levando o pessoal do educativo. Já fizemos isso em uma escala menor, mas agora seria um trabalho muito grande. Então de fato estamos sofrendo muito com isso.
ARTE!✱ – E nem se sabe ainda quando as coisas poderão voltar…
Sim, nós estávamos com as exposições programadas para até o final de 2021, só que agora tive que suspender tudo. Talvez a gente recomece a nova programação em março do próximo ano, mas ainda não há certeza.
ARTE!✱ – Por fim, pensando um pouco no momento político, a gente vive um momento conturbado no país, com um governo federal que parece ver cultura e educação quase como áreas inimigas. Queria saber um pouco como enxerga esse momento e como trabalhar nesse contexto?
Infelizmente, falar disso é quase como chover no molhado. Porque não adianta, sempre foi assim. A cultura sempre foi o patinho feio, porque não dá voto. Então se você for olhar o percentual que o governo federal destina para a cultura, parece uma brincadeira. Se para a educação já é um problema – e estão sempre cortando mais, imagine a cultura. Mas não é só esse governo. Todos os governos nunca se preocuparam com a cultura. Esse está pior, não há a menor dúvida. É uma situação absurda, mas nós vamos tocando em frente. Pode ser que um dia apareça algum governo diferente, que olhe para a educação e para a cultura, até porque eu não conheço nenhum um país que cresceu sem focar em educação e cultura.
ARTE!✱ – Vivemos também, exatamente neste momento, a disputa eleitoral municipal, e Fortaleza terá um segundo turno. Você considera que isso de algum modo interfere no trabalho do museu. Se preocupa com o resultado da eleição?
Como eu não tenho nada com o governo, não me preocupo neste sentido. Me preocupo como cidadão, mas não na questão da gestão do museu. Porque quem banca tudo somos nós. Temos alguns parceiros, que realmente nos ajudam, mas em termos de governo, nada.