Mari Nagem, 41º

No coração de Belém, o Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi torna-se, até 30 de dezembro, um território de escuta e convivência entre espécies. A exposição Um rio não existe sozinho propõe uma imersão sensível nas interdependências que sustentam a vida na Amazônia e no planeta. Idealizado pelo Instituto Tomie Ohtake para dialogar com os temas urgentes relacionados à 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 30), que acontecerá em novembro de 2025, em Belém, o projeto reúne nove artistas e um escritório de arquitetura que dialogam diretamente com o ecossistema local, numa trama que une arte, ciência e saberes tradicionais.

Carol Pasinato, Sabrina Fontenele, Gabi Moulin, Vânia Leal e Ana Roman

A curadoria de Sabrina Fontenele e Vânia Leal surge do desejo de aproximar práticas poéticas e científicas num contexto de urgência ambiental. “Vivemos um tempo em que a crise climática se tornou realidade cotidiana. Esta exposição é uma forma de imaginar, junto com artistas e saberes tradicionais, outras possibilidades de existência mais generosas e sustentáveis”, afirma Fontenele.

Entre os artistas convidados, Rafael Segatto vê no encontro entre arte e ciência uma afinidade profunda. “Eu estou muito feliz de estar com esse trabalho no Goeldi porque é uma instituição das mais antigas do Brasil e ela tem um foco em ciência e em educação. Isso enquanto artista me interessa muito porque o meu trabalho tem uma série de atravessamentos nessas áreas”, diz. Filho de pescadores, o artista reconhece na água o elo que costura dimensões materiais e espirituais. Ao observar o ambiente, comenta sobre as penas de urubu espalhadas ao redor: “Qual museu tem urubus?”, questiona. No parque, eles habitam a samaúma próxima à sua instalação, e essa convivência interespécie, segundo ele, é parte do próprio trabalho. “Os urubus são seres importantes para o ciclo, sendo decompositores. Eles contribuem, trabalham junto comigo”, completa.

Mari Nagem parte de um evento recente para criar 41°C, obra que transforma dados científicos em imagem térmica. “Foi inspirado na seca histórica de 2023, no centro da Amazônia, numa cidade chamada Tefé”, explica. Ela lembra das águas que atingiram temperaturas inéditas e da morte de centenas de botos: “Algumas partes do rio chegaram a 41 graus. Foi um evento sem precedentes”. Ela relembra que muitos ribeirinhos tiveram que deixar suas casas porque não dava para navegar pelo rio, que era só lama. Ao transpor esse colapso climático para uma visualidade sensível, a artista propõe uma experiência de leitura das cicatrizes do território.

Também interessado na dimensão simbólica da natureza, Gustavo Caboco, do povo Wapichana, apresenta Casa de bicho e Antibatismo: Victoria Regia. Diante da samaúma que abriga sua instalação, ele explica que em Roraima, a árvore é chamada de casa de bicho, porque é também casa de espíritos. No contexto do parque, o nome ganha novo sentido: “Aqui no museu acaba se tornando essa casa de vários bichos, né?”. Caboco reflete sobre como um parque, apesar de não ser uma floresta, nem se parecer com uma, talvez seja o mais próximo que a gente chegue “dessa ficção do que seria uma floresta na cidade. Mas tem uma distância, né? Então, lembrar da casa de bicho é isso”. 

O paraense Francelino Mesquita traz à mostra um elo entre cultura popular e preservação ambiental. Suas esculturas em miriti — matéria-prima tradicional dos brinquedos de Abaeté— derivam de uma prática reconhecida como patrimônio cultural. “A partir de 1999 decidi ressignificar, experimentar essa utilização desse Meriti de forma diferente. Trazer para as artes plásticas, trazer de uma forma mais natural para o público”, conta. O gesto de levar o material natural, sem pintura, para o espaço expositivo é, para ele, um modo de afirmar a vitalidade de um saber ancestral.

Em Entoar o vento e dançar marés, Elaine Arruda volta ao rio Tijucaquara, no Marajó, onde nasceu sua avó. “É um rio que a minha vó saiu com 12 anos de idade e veio para Belém com a família para estudar. Ela nunca mais tinha voltado. Então, quando ela fez 80 anos, eu dei de presente para ela uma viagem de retorno a essas águas.”, relata. A viagem, inicialmente familiar, tornou-se o ponto de partida para um trabalho sobre memória e território. “Você chega lá, não tem nada. Você tem um rio na sua frente para você tomar banho. Você só sai de lá quando a maré enche”. A artista traduz essa experiência em uma instalação que convoca o corpo e a lembrança como modos de pertencimento.

Em comum, os artistas, entre os quais também estão Noara Quintana, PV Dias, Sallisa Rosa e Déba Tacana, constroem suas obras em relação direta ao lugar, incorporando elementos da paisagem e dos ciclos naturais do Parque Zoobotânico. Como afirmam os representantes do Museu Goeldi, Sue Costa e Pedro Pompei, a mostra reafirma a importância de criar vínculos afetivos com o patrimônio natural e cultural da Amazônia: “Compreender a Amazônia exige tanto precisão científica quanto abertura poética.”

Um rio não existe sozinho não busca ilustrar a natureza, mas escutá-la, reconhecendo-a como sujeito político, vivo e em transformação.


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