Um marco existencial

Como confrontar a orientação dos trabalhos artísticos dos povos indígenas frente ao dilema do novo, que move o sistema de arte no mundo? As obras reunidas na mostra Histórias Indígenas, em cartaz no Masp, fazem um recorte significativo da produção desenvolvida por indígenas de sete países: Austrália, Brasil, México, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia e Noruega. O debate contemporâneo sobre a identidade de tais artistas aponta que grande parte deles é aceita e tem uma produção constante, sendo que alguns estão em acervo de museus ou em galeria de arte. O marco temporal da mostra vai desde 200 A.C até os dias de hoje e reafirma o poder das cosmologias presentes nos oito núcleos da mostra. Como tal, Histórias Indígenas envolve 175 artistas cujas etnias estão espalhadas pelas comunidades ou em cidades. Por uma parte, as narrativas sustentam que as produções do conjunto guardam histórias de ensinamentos milenares, absorvidos pelos “brancos”, e também narrativas sobre o apagamento da cultura indígena provocada pelo racismo, abusos e violência contra os considerados “diferentes”.  

Histórias Indígenas provoca a leitura de algumas manifestações, como a que abre a exposição, o vídeo em que Airton Krenak, uma das lideranças indígenas brasileiras, reconhecido internacionalmente, apresenta-se em 1988, ano da Constituinte, na Câmara dos Deputados em Brasília, com um texto curto e potente, no qual defende o direito dos povos originários do Brasil. Neste sentido a exposição conta com outros ativistas, alguns deles artistas visuais como Kenhiporã, também conhecido por Feliciano Lana, que desenvolve uma pintura com papel e guache, na qual materializa visões transcendentais que problematizam o conceito de identidade. A produção resultante das etnias dos sete países atesta que todos conseguiram salvar suas culturas como comprovam os textos dos curadores convidados. O segmento brasileiro coube a Edson Kayapó, Kássia Borges Karajá e Renata Tupinambá. 

Ao lado, Sophus Tromholt, Elen Clemetsdatter com as filhas, Kautokeino

Como ocorre com várias pessoas, antes de visitar a exposição eu não conhecia nada sobre o território Sápmi, no norte da Europa, onde vive o povo Sami, em grandes territórios da Noruega, Suécia, Finlândia e, Península Kola, no noroeste da Rússia. Durante séculos o sol é adorado nesse povo como o mais forte dos poderes da natureza, como explica a curadora Irene Snarby Sápmi no catálogo da mostra. Um dos artistas escolhidos, Alf Salo (1959-2013) é um pintor consagrado com obras no acervo do Musus Riddo Duotta Museat, na Noruega. Sua pintura é sensorial e experimental, uma delas registra o momento ápice da capacidade do olho humano permanecer olhando diretamente para o sol. O resultado traz alguns traços do psicodelismo.

De forte influência política e de participação ativa, os indígenas do México têm como curador Abraham Cruzvillegas que propõe trabalhos pontuais, de vários momentos da luta daquele país. O estudioso ressalta a identidade como conceito plural instável e contraditório do “eu”, porque, como explica a linguista mixe, Yásnaya Aguiar Gil, a palavra “eu” não existe em nenhuma língua nativa. Em toda a exposição descobrem-se inserções de técnicas singulares, como a serigrafia realizada com chocolate feita por Minerva Cuevas, uma espécie de cartaz com um texto provocador “Canibal es el índio, el esclavo, el proletário, el revolucionário”.

Uma nova ordem se espalha pelo mundo e tenta minimizar o regime disciplinar que apaga o indivíduo. A Austrália, que tem protagonizado movimentos ativistas em defesa dos aborígenes, convidou o curador Bruce Johnson-Mlean para dar caráter ao conjunto. Ele discorre sobre a região do Deserto Ocidental, a última das fronteiras da Austrália colonial. Em alguns territórios dessa região, pelo fato das terras ancestrais estarem localizadas nas áreas mais remotas e inóspitas, a colonização europeia não chegou lá proporcionando uma vida em estilo tradicional até 1984, como comenta Johnson-Mlean. As reivindicações que envolvem o problema da água nesse território desértico têm décadas, e já geraram violências culminando no Massacre de Coniston (1928), quando dezenas de indígenas morreram. O artista australiano escolhido é Shorty Jangala Robertson que trabalha uma pintura pontilhada com destaque para a tela Ngapa Jukurrpa – Água Sonhando (2005), inspirada na falta nesse elemento fundamental para a vida. 

A ancestralidade do Peru é uma das mais reverenciadas no mundo, Machu Pichu anualmente atrai milhões de visitantes de todo o planeta. Em contraste com essa riqueza étnica, as comunidades peruanas contemporâneas sofrem um racismo estrutural. Assistimos a uma violência social que a curadora Sandra Gamarra comenta em seu texto curatorial. “O lugar que o sistema reserva para o índio peruano na sociedade é um local de subalternidade, selvageria e inconsciência de seu próprio subdesenvolvimento. Esse é o lugar ocupado pelo chamado ‘índio’, irônica e humoristicamente”. Entre os trabalhos escolhidos por ela, vale ressaltar a obra de Carlos Dominguez Hernández, que retrata uma família com as fotos do pai e de um filho desaparecidos. A luta dos povos originários peruanos, assim como a dos demais do planeta  arrasta-se até hoje.

A Nova Zelândia, país que foi rebatizado pelos parlamentares como Aotearoa Nova Zelândia, escolheu como curador o crítico Nigel Borell que descreve como a arte maori tem um legado poderoso como linguagem visual. “Trata-se de um sistema de conhecimento, uma forma de relembrar e registrar eventos e entendimentos sobre o mundo ao nosso redor”. Os artistas representados estão conectados pela arte maori-whakapapa que conseguiu sobreviver às atrocidades, apesar da ruptura causada pelo domínio colonialista. Com técnica que se reporta a grafites, Jessica Hinerangi mostra a pintura Confront the colonisers (enfrente os colonizadores) da série Tino Rangatiratanga (2022). Do segmento ativismo, que retrata a luta permanente em todos os países, destaco a imagem icônica de uma jovem indígena com o punho erguido em uma zona rural. Trata-se do trabalho Máxima Acuña en BrigadeiroTragadero Grande en frente a la Lagoa, (2012).

Com protagonismo individual, os Estados Unidos aparecem com uma única artista, a navajo Melissa Cody, que faz uma exposição dentro da exposição. Com o título Céus tramados, Melissa realiza uma mostra em um espaço diferente, todo rosa, em que expõe tapeçarias trabalhadas com assuntos geométricos coloridos, e que tem a curadoria de Isabella Rjeille e Ruba Katrik. Um dos textos do catálogo é de Connie Butler, diretora do MoMA-PS1, que nos leva à história excepcional desta artista que desenvolve sua obra em tear original do povo Navajo. Butler explica que “as tapeçarias são produzidas com base em técnicas de tecelagem Germantown, utilizando sofisticadas sobreposições geométricas”. Melissa é uma Navajo de quarta geração e, segundo Butler, ela nos orienta para o futuro, por destacar técnicas duradouras, enfatizando as formidáveis contribuições de artistas indígenas que continuam a fazer avançar diálogos relevantes sobre a criação de espaço e identidade, por meio da engenhosidade e da resiliência.

Com o título bem original Na Trama da Mulher Aranha, o ensaio da curadora Isabella Rjeille toca na cosmovisão diné/navarro, em que o tear é a representação do universo. “A barra superior representa o céu e a inferior, a terra. A tensão que sustenta os fios é simbolizada pelo trovão, que estabelece uma conexão entre o mundo celeste e terrestre”. Ela ressalta que, pelo uso de padrões e cores vibrantes, os trabalhos de Melissa são associados ao movimento estilístico Germantown Revival, que nasceu depois que o povo Diné foi expulso de suas terras ancestrais. Em seu texto, conta ainda que esse processo de migração ficou conhecido como a Longa Caminhada ou Hwéedi (1863-1866). Houve incêndios criminosos, pilhagem, destruição dos rebanhos liderados pelo major-general James H.Carleton (1814-1873), que buscava inviabilizar os modos de vida tradicionais dos povos daquela região. Melissa cresceu nos anos de 1980 entre o Arizona o sul da Califórnia, e alguns trabalhos trazem a marca dessa territorialização. Chama a atenção a tecelagem Navajo Transcendent, com o “estudo” de diferentes tridimensionalidades. Isabella ressalta que “a tecelagem é também uma forma de reconexão e retorno ao território ancestral a partir da memória”. A ideia de território está fortemente presente na obra Cliff DwellerHabitante do Penhasco, em que a artista trabalha com graduação de marrons e vermelhos que se reportam à parte rochosa dos cânions da região. Completando a individual, um catálogo, especialmente editado para esta exposição, traz uma coleção de obras de Melissa Cody e um conjunto representativo de textos críticos e ensaios de vários autores.

Atualmente a artista navajo desenvolve seu trabalho com as pintoras Jaune Quick-to-See Smith, do povo Salisch de Montana e Emmi Whitehorse, do povo Diné. Entre seus colecionadores estão museus e fundações internacionais.


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