Entre a terra e o mar, o manguezal é um lugar de transição. Do Oiapoque, no Amapá, até Laguna, em Santa Catarina, os manguezais podem ser encontrados quase que por toda a costa brasileira. Esse ecossistema abriga formas de vida que prosperam em meio à instabilidade e sua importância é tremenda, já que protege a costa da erosão e eventos climáticos extremos.
Agora, o manguezal se tornou ponto de partida para uma reflexão sobre as interdependências entre humanos, natureza e cultura na exposição Manguezal, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro (CCBB RJ), com curadoria de Marcelo Campos, pesquisador de identidades brasileiras com sólida trajetória na arte contemporânea.
A exposição partiu do livro homônimo, de Andrea Jakobsson, e propõe um olhar sobre o mangue como metáfora para a arte e para a própria experiência brasileira: um ambiente de mistura, reinvenção e sobrevivência. Em entrevista à arte!brasileiros, o curador revelou que a ideia de dedicar uma mostra inteiramente aos manguezais foi muito satisfatória, pois foi possível compor um conjunto de artistas de diferentes tempos e linguagens: “Os manguezais passaram pela arte brasileira em diversos momentos. De artistas modernistas como o Abelardo da Hora, o Lasar Segall, a artistas contemporâneos como a Uýra Sodoma e até o Carnaval carioca”, explica Campos.
No Museu de Arte do Rio, onde Campos é curador-chefe, ele tem trabalhado com projetos de curadoria compartilhada. A curadoria se assume como um dos dados de uma mostra e não como o único dado: “Com isso, a gente vem trabalhando com especialistas, que nos dão informações sobre os assuntos que transformamos em listas de obras, em ideias, em imagens”. O mesmo processo aconteceu durante a pesquisa de Mangue.
Ao mergulhar nesse universo, Campos se deparou com a informação de que o Brasil é um dos lugares mais importantes do planeta quando se fala de manguezais. “Esse lugar promove uma alteração do clima: esfria o clima quente, faz a transposição da água doce para água salgada. São coisas incríveis e riquíssimas”, aponta. No entanto, o curador lamenta que o manguezal ainda sofra com a confusão popular entre o mangue e o esgoto.
O curador fez questão de incluir artistas que já haviam se aproximado do tema em momentos cruciais da arte brasileira, como a modernista Celeida Tostes. Na época em que ela lecionava na UFRJ, a argila era retirada da borda dos mangues da Baía de Guanabara, um ato hoje impossível devido à poluição.
Na arte contemporânea, os trabalhos de Uýra Sodoma e a obra comissionada de Azizi Cypriano ganham destaque. Azizi, por exemplo, produziu uma performance e fotografias que focam na transmissão do saber.
Azizi Cypriano e a obra Movimento-grafia

A obra de Azizi Cypriano, intitulada Movimento-grafia 10, é um trabalho inédito, comissionado para a exposição, que se aprofunda na relação entre corpo, escrita e o território do manguezal. A artista, que desenvolve a pesquisa Movimento-grafia desde 2019, que relaciona a escrita com a lama, inspirada no texto Da grafia-desenho de minha mãe, de Conceição Evaristo, encontrou no mangue um território sagrado. “O mangue é uma geografia muito misteriosa, não é todo mundo que consegue acessá-lo porque ele não é não é como uma cachoeira que ainda que seja também muito espiritual, muito poderosa, a gente consegue acessar com uma certa facilidade”.
Azizi relata que o convite para a exposição foi antecedido por uma imersão na Baía de Guanabara, junto ao grupo Guardiões do Mar. No entanto, o ponto de virada para a criação da obra foi o encontro com a comunidade do Quilombo do Feital, formada por pescadores de caranguejo, e, em especial, com a artesã Dona Almirena, que trabalha com a palha da taboa coletada no mangue, e sua filha, Val Quilombola, liderança do quilombo.
“Eu acho que a primeira coisa que eu realizo com o Quilombo do Feital é essa chegada num território do qual sem eles eu jamais poderia conhecer da maneira que eu conheci. Toda vez que a gente for adentrar o manguezal, a gente precisa pedir licença”, explica.
A performance de Azizi só foi possível a partir dessa relação profunda com a comunidade, que a acolheu e a ensinou a “chegar” no mangue. A artista descreve que, ao adentrar o manguezal, seu corpo se curva, pois é um lugar que exige lentidão e respeito: “Eu precisei entender junto com a espiritualidade que adentrar o mangue, é como se você tivesse aprendendo a engatinhar: você vai pisando devagar, conhecendo e sentindo texturas novas pela primeira vez”.
A artista incorporou à obra dois troncos do próprio manguezal, um material que, segundo ela, possui uma propriedade muito distinta e que hoje só pode ser acessado por quem adentra o mangue, visto que sua exploração é regulamentada.
O trabalho também inclui três fotografias em colaboração com a fotógrafa Laryssa Machada, intitulado Evitando a erosão. A obra é um convite à reconexão com figuras e ensinamentos ancestrais para preservar a dignidade da existência e evitar o “desgaste, o sumiço de vida”.
O Manguezal no Carnaval e na pauta global

A exposição também celebra a forte presença do manguezal nas manifestações populares. Uma instalação de Gabriel Haddad e Leonardo Bora, carnavalescos da Grande Rio, traz elementos do carro alegórico de 2025, inspirado nas Caruanas, seres mitológicos da Amazônia que habitam os manguezais.
O enredo da Grande Rio para 2026 será “A Nação do Mangue”, criado por Antônio Gonzaga que, na mostra, expõe protótipos de fantasias inéditos, reforçando a união entre cultura popular, arte e meio ambiente.
Com a exposição coincidindo com a véspera da COP 30, Marcelo Campos reflete sobre o papel da arte na sensibilização ambiental. Para ele, o poder simbólico da arte é imediato: “Quando você olha as raízes aéreas de um manguezal, imediatamente você imagina que você não quer pegar um facão e destruir aquilo. Você não quer poluir aquele rio transparente, né? Eu fico pensando que nosso papel na arte é dizer: olha, é tão forte isso, temos esse simbólico aqui de sublime, de beleza, de cultura, de produção de música, tudo vem desse lugar, o próprio movimento manguebeat. Então, porque vamos destruí-lo? Então, eu imagino que nesse momento, com esses eventos culturais, a gente precisa responder com a força do simbólico”.
“Manguezal” fica em cartaz no CCBB RJ até 02 de fevereiro de 2026, com entrada gratuita.


 
		

 
                             
                             
                             
                            






