'Paisagem selvagem IV' (2024), Leda Catunda. Foto: Eduardo Ortega. Cortesia [Courtesy] Fortes D’Aloia & Gabriel, São Paulo/Rio de Janeiro
'Paisagem selvagem IV' (2024), Leda Catunda. Foto: Eduardo Ortega. Cortesia [Courtesy] Fortes D’Aloia & Gabriel, São Paulo/Rio de Janeiro

U ma catarata de saias das Arábias, um Eldorado na floresta tropical egípcia, o grande lago-loja de um aeroporto, a festa de São Tomás de uma província barroca, a cidade moderna baldia, a catedral jamais construída num canto do mundo setentrional e um altar do maior ovo Fabergé nunca antes visto – tais são alguns dos lugares para os quais nos projetam as imagens que se aglutinam nessas espécies de objetos que se comportam como grandes tapeçarias, almofadas, apoios de pés e de braços, com seus remates estampados, emborrachados e coloridos, e suas franjas que avançam estufadas, com frequência assediosas ao toque.

Ocorre que a paisagem adentrou de vez esses trabalhos como seu elemento organizador primeiro: há sempre céu, horizonte, muitas vezes lago. Quem sabe, não exatamente paisagem enquanto um gênero, mas como condição necessária para que esses trabalhos reportem sempre a um outro lugar, que, em sua franca impossibilidade, pois demasiado compósito e incongruente, atina no entanto com uma realidade bem mais materialmente comprovável do que a mera imagem idílica, árcade de um lugar perdido qualquer; trata-se, afinal, de paisagens que já vêm saturadas de sacolas, etiquetas, tags, que vêm já preparadas para o turismo, inclusive com a presença daquelas marcas cujas logos já se parecem com antigos conhecidos ilustres – aqueles quase-personagens com os quais nos sentimos em casa: aqui, o Wilson, ali, o bom camarada que aparece no saco de arroz…

Se há algo que não se deixa escapar nessas obras é a constante indagação desse “um outro lugar”; mas trata-se de paisagens que já não são mais oníricas, não admitem a absorção do sujeito em seus enredos paradisíacos: confundem-se muitas vezes com estampas de toda sorte; têm uma velocidade de preenchimento dos espaços com retalhos, cores e informações advindas de lugares distintos. Reagem, enfim, a uma compulsão pela totalização ou acúmulo: os trabalhos fecham-se sobre si mesmos, arredondam-se, oferecem-se como pequenos cosmos, em que as coisas mais discrepantes devem se submeter a uma ordem de abarcamento. E, no entanto, feitos de partes facilmente destacáveis, pendentes, de procedências francamente díspares, volumetricamente dissonantes, esses trabalhos obrigam essa totalidade a se autorreconhecer em sua desfaçatez. De saída, um modo estranho de pertencerem a seu próprio contexto imediato, um país já há muito abstraído em um exotismo tropical qualquer, todavia sem quererem flagrá-lo em sua iconografia endógena e indulgentemente nacional; afinal, os outros lugares a que esses trabalhos se descortinam são tão esvaziados de substância, densidade, história própria, que, em um ponto, parecem corresponder a todo lugar que possa ser chamado de outro, distante, exótico, incongruente – costelas de onde poderia sair uma Eva pintadas com as cores da costela-de-adão; mata virgem selvagem, encimada por camelos a passeio; paraísos de ouro que devem ter aprendido a se formar com Las Vegas, Miami e os parques temáticos e lojas de cacarecos ao redor do globo; ou, em outros termos, incongruências que não mais admitem qualquer solo seguro, genuíno, sem revelar estridentemente sua mitificação.

A todas essas paisagens tão impossíveis quanto muito provavelmente localizáveis de imediato num imaginário contemporâneo em que muita coisa que não procede de um lugar comum pode ocupar sem grandes problemas o mesmo campo semântico, soma-se, então, a escala e o formato de objetos prontos para responderem muito diretamente ao corpo de quem os vê, às vezes, pendendo o suficiente da parede, a darem a impressão de que poderiam ser abarcados em um abraço; outras vezes, quase que convidando ao movimento de uma leve espalmada; ou, ainda outras, plissados, supondo que eventualmente poderiam ser talvez vestidos – promessas igualmente cumpridas de uma compulsão pela empatia, em que tudo o que seja informe, esquisito, abjeto, deva, no fim das contas, devolver-se à apreensão imediata e acabar por fazer sentido a um observador sempre ávido pela posse dos objetos que lhe desafiem qualquer dificuldade.

A propósito, esses trabalhos ostentam com perspicácia o hábito da apropriação de coisas e imagens; vivem dos índices do deslocamento de objetos para dentro de seu universo particular. Uma simples passada de olhos e ali logo se percebem calças jeans transformadas em superfícies a serem pintadas, sacolinhas de compras que mal se decompuseram para serem adicionadas à lona, camisetas estampadas com cartazes de filmes. Uma polifonia, então, que não parece renegar de pronto a memória do hábito alimentar antropofágico, uma prontidão para aclimatar a história social, a variedade de gostos e procedências dos objetos que ali se deglutem.

Contudo, o modo mesmo com que concatenam suas disparidades é de pronto ambíguo: de um lado, domina a linguagem da confecção de peças do vestuário, a costura, o rebite, o remate, a sobreposição de tecidos, o volume adquirido pela sobreposição de peças e retalhos, o que leva a que a estrutura de tais objetos se ofereça como uma composição complexa, em tudo avessa a um acúmulo distraído de fragmentos; mas, de outro lado, tais pedaços de coisas existentes tendem a se acomodar visualmente uns aos outros por conta de uma espécie de uniformização de sua volumetria, intensidade cromática, desequilíbrio de tamanho e formato pela distribuição astuta da tinta sobre as superfícies, como se àquela estruturação primeira fosse sobreposta uma prática mais corriqueira de customização de peças.

Resulta disso que, tão logo as absorvem, os trabalhos também se despedem das descontinuidades de seus materiais, do choque que poderia ser produzido pelo encontro de coisas que vêm de lugares distintos. Pouco parece restar daquela espécie de promessa de “impertinência do subdesenvolvimento” que uma vez alimentou uma paixão por tudo aquilo que fosse sujo, marginal, periférico, capaz de se espantar com a violência de um tempo presente feito de perplexidades e contradições irresolutas.

Essas obras sabem que tudo o que recolhem traz a marca daquilo que já passou, que já não mais oferece respiro suficiente para provocarem um escândalo qualquer. Parecem ao contrário afirmar muito resolutamente que, tanto faz o que possam conter, qualquer que seja a natureza das imagens ou coisas que anexem a si, tudo ali será aplacadamente reconhecível, familiar. Por maiores que sejam, por mais repletas de elementos desconversados, sua estranheza não residirá em suas escolhas de materiais, em sua inconsequência, mas, antes, em que se pergunte o porquê resultam em compostos de coisas sempre ligeiramente ultrapassadas.

De fato, não é o frisson ou o suspiro que anima essas obras, mas aquela espécie de gravidade do caimento de um tecido que cessou de se mexer e agora pesa. Elas supõem, em seu acúmulo, em suas camadas de mesmas coisas, muitos objetos passados aglutinados juntos, mas seriam uma desfeita para quem quisesse examinar qualquer história da moda, da indústria têxtil ao olhar para elas. Se possuem uma enorme quantidade de objetos, seu volume às vezes corresponde apenas a uma só fração de tecido, a uma ou duas das estampas em voga na estação passada, não mais. Se se agigantam e engordam, não é porque carreguem ou suponham ser capazes de narrar o adensamento de uma verdadeira experiência acumulada.

Em seus materiais, não são obras dotadas de muito passado. Lidam, antes, com a dimensão material gigantesca de um ou dois meses atrás no tempo da circulação das imagens e objetos que consomem e de onde tiram um máximo de coincidências e analogias que se possam formular de uma tacada só: um santo figurado perto de um trecho de padrão decorativo, e o trabalho parece barroco, e com a adição de retalhos, bandeirinhas de São João; em outro trabalho, uma bananeira, e tudo se tropicaliza num exotismo marroquino; um xadrez, e o elemento arquitetônico vem às pressas acudir o significado de uma imagem; formas simbólicas geometrizantes, e, de repente, Klee, teosofia; dourado e azul, e o mesmo elemento que em outra obra era uma saia, agora agiganta um vitral oval goticizante.

Convenhamos, não é de modo algum difícil adivinhar nessas obras o quanto elas transpiram de referências à história da arte. Mas sabemos que parecer com coisas já vistas na arte não as justifica. Talvez seja que elas não prestem de fato reverência à arte; ou, talvez, seja também que elas não precisem exatamente da tradição da arte para serem compreendidas. Tudo o que elas fazem com aquele disparate de coisas que ostentam é chamá-las muito rapidamente de arte, antes mesmo que se possa pensar que sejam restos, coisas da cultura, que sejam de bom ou de mau gosto – nada disso importa. O que chega à obra como uma estampa qualquer de tecido que vá parar na borda de remate de um desses objetos é rapidamente repintado; a tinta faz com que a estampa impressa se converta, por coberturas rápidas, em pintura, esmalta a impressão de carga baixa que recebeu, e, por uma redução à manualidade do pincel, aquela estampa qualquer agora parece possuir alguma coisa do caráter apenas indicado com que um Matisse faz surgir um aroma de mundo imaginário perdido no manejo de padrões.

Os procedimentos de Leda com e sobre seus objetos os estilizam, impõem a eles uma maneira pessoal de se comportarem, cuja justificativa não se oferece nessa ou naquela obra, mas somente em uma visada de conjunto de sua trajetória. Se aquelas franjas de pontas arredondadas se assemelham aqui a objetos organicamente fálicos, é porque aprenderam há muito, na trajetória da artista, a significar línguas, depois asas de inseto, depois gotas, e agora sabem muito bem adquirir volume sem deixarem de ser vistas como um vocabulário próprio a seu trabalho.

Esses trabalhos são enraizados em autorreferências à obra da própria artista, mas são, antes que uma repetição, uma narrativa formal extensa, que, para ser explicada, deve ser observada no tempo de seu desenvolvimento – desde quando poderiam ser explicadas como “achados”  individuais em um, outro ou outro trabalho do começo dessa trajetória (seria relativamente simples observar como se deu, lá atrás, o ingresso, nas obras de Leda, do procedimento de pintar as áreas de conexão entre um retalho e outro colados ou costurados; ou, então, quando ela começou a colar pequenos quadrinhos dentro de quadros ou telas maiores; ou, ainda, quando objetos começaram a pender da parede em direção ao espaço – derretiam-se, eles, vinham justificados por uma imagem de cachoeira, que, depois, virava espécies de tecido recortados em forma de gotas, ainda antes de se parecerem com dedos, falos, e de repente serem assumidos como bandeirinhas de São João, aqui, e línguas, ali, ou saias, acolá).

Não resta dúvida de que isso contribui para a impressão de que se trata, agora, de uma obra que se oferece com ares de uma “maturidade”, a ser quem sabe muito repentinamente associada a uma repetição de fórmulas que levariam a uma percepção de que o trabalho tinha se cansado de inventar, e, portanto, arrefecera em uma versão tardia de si mesmo. Não seria incorreto dizê-lo; essas obras já não justificam seus procedimentos de apropriação, inserção de objetos, figuras, em termos de um discurso mais ou menos disfarçado de “vanguarda”; eles são, tais procedimentos, silenciosamente artísticos, ou seja, não estão mais dispostos a revelar as fraturas de suas justificativas formais por conta dos elementos sociais, históricos, ideológicos que sabem que carregam — elementos de gosto, de procedência, de significado de suas estampas. Mas aí é que está: oferecerem-se como “formalismos”, como excessos “estéticos” é o modo desse trabalho atinar com o processo de ultraestetização a que ele sabe que se destina; ou, de outro modo, a que ele sabe que seus materiais igualmente se submetem. A estampa da moda que em pouco tempo perde seu valor inusitado e assoma no grande universo dos tecidos sem importância; a imagem icônica da ideia de exotismo – um camelo, quem sabe –, que, em pouco tempo, se torna mera logomarca; a imagem insondável das mil e uma noites que se substitui pela composição mais abstrata de correntes com tiras douradas dependuradas em uma saia. Trata-se de um trabalho que se oferece em franco processo de autonomização frente ao suposto impacto dos objetos que o compõem, decerto não mais os conflagrando de frente, mas desafiando silenciosamente sua onipresença na esfera da cultura com a autoafirmação de sua plasticidade sobre eles.

Ensaio escrito pelo crítico e professor de arte Carlos Eduardo Riccioppo para acompanhar a exposição Paisagem Selvagem, de Leda Catunda. A mostra fica em exibição entre 10 de agosto e 5 de outubro de 2024, na Carpintaria, no Rio de Janeiro.


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