Júlio Martins da Silva, Sem título, Óleo sobre tela

foi ao leste do Éden, no território de Nod, que Caim ficou exilado após matar seu irmão Abel. Perdeu a abundância do paraíso e teve de criar seu refúgio, erguendo um novo lugar que pudesse habitar. É esta passagem bíblica, aqui bastante simplificada, que inspira a exposição Leste do Éden, que reúne nas galerias Estação e Millan, em São Paulo, os trabalhos de três pintores de diferentes gerações: o uruguaio Pedro Figari (1861-1938) e os brasileiros Júlio Martins da Silva (1893-1978) e Paulo Pasta. A ideia de exílio, no caso destes artistas, obviamente não se refere a uma punição por qualquer pecado cometido, nem a algum tipo de expulsão forçada de uma terra, mas sim a um sentimento que percorre suas obras e que remete ao deslocamento – seja ao lugar de onde se veio, mas que não mais existe, seja a um lugar para onde se poderia ir, mas que igualmente não é real.

Com curadoria de Antonio Gonçalves Filho, a mostra, que celebra os 20 anos da Galeria Estação, coloca assim em diálogo trabalhos de três nomes atuantes em diferentes momentos da história moderna e contemporânea, desde a primeira metade do século 20, no caso de Figari, até os dias atuais, no caso de Pasta. Todos eles com pinturas onde predominam a natureza, com raras figuras humanas, e nas quais não se tenta reproduzir paisagens realistas, fiéis às existentes. “Acho que o que costurou a exposição, mais do que propor um diálogo entre gerações distintas, é uma ideia de paisagem como este ponto fora do lugar”, explica Pasta. Em seus “exílios”, de onde pintaram, “todos os três têm com a paisagem uma espécie de criação de um lugar simbólico”.

No caso de Pasta, o local deixado para trás é a sua cidade natal, Ariranha, no interior de São Paulo, de onde saiu aos 17 anos de idade. Consagrado ao longo de 40 anos de carreira como pintor abstrato, dono de um universo cromático e geométrico marcante, o artista apresenta em Leste do Éden um eixo menos conhecido de seu trabalho. “Eu não sou um paisagista. Só pinto as paisagens do lugar em que nasci e cresci, é isso que me interessa”, afirma. “Tem sim uma nostalgia, mas principalmente tem vazio e distância. E quando você trata de vazio e distância, é inevitável ter a sugestão da melancolia, da solidão.” Se por um lado revive, nestes quadros, sentimentos antigos, explica ele, o “voltar para casa” é estar em um lugar que não mais existe. Um lugar, como completa Gonçalves, que precisa ser criado, “assim como fez Caim”.

Uma situação semelhante, mesmo que resulte em visualidade pictórica tão distinta, também dá as bases do trabalho produzido por Figari tantas décadas antes. Uruguaio que partiu para Paris nos anos 1920 – onde se aproximou de pós-impressionistas como Pierre Bonnard e Édouard Vuillard –, o artista seguiu pintando paisagens de sua terra de origem, o universo gaúcho, pastoral, os pampas, as festas populares uruguaias e os rituais afro do candombe. Como explica Gonçalves, mesmo adaptado à modernidade parisiense, “ele nunca pintou um carro, um trem, um edifício de arquitetura francesa. O que lhe fazia falta era a natureza, uma nostalgia desse lugar que ele conheceu na infância e na adolescência e que para ele não existia mais.” Em seus quadros expostos, deste modo, surge um universo que, embebido na memória, não existe na realidade, mas em um “tempo suspenso”, imaginado e criado.

O caso que certamente mais se diferencia, entre os três, é o de Júlio Martins, já que o seu exílio não se refere à memória de um passado nostálgico ou de um lugar abandonado. Parece factível pensar que Martins esteve exilado sem sair de sua própria terra, o Rio de Janeiro, dadas as condições sociais desfavoráveis, de carências e privações em que viveu. Neto de escravos africanos e filho de pais analfabetos, nasceu em Icaraí (Niterói) e começou a trabalhar cedo para sobreviver. Pintor tardio e autodidata, não teve uma formação erudita como Figari e Pasta. Curiosamente, não retratou o universo duro no qual habitava. Pelo contrário, seu deslocamento foi para paisagens de lugares perfeitos, harmônicos, simétricos, inalcançáveis em vida – mas, quiçá, em um futuro fictício ou em uma vida após a morte, como destaca Gonçalves. 

Nas palavras de Pasta, curador de uma exposição sobre Martins realizada na própria Estação em 2012, “com uma delicadeza extrema, ele constrói um mundo mais que possível, mas perfeito. Uma projeção deste mundo que não conheceu”. Ao que Gonçalves completa: “Imagine, dentro de um barraco, pintar essas coisas multicoloridas, simétricas, de uma realidade paradisíaca”. Ao longo dos anos, o artista alcançou relativo espaço no mundo das artes, chegando mesmo a participar da Bienal de Veneza de 1978. Ainda assim, permaneceu com reconhecimento muito aquém do que se poderia esperar dada a força de sua produção.

Leste do Éden, que se divide entre as galerias Estação e Millan, marca os 20 anos da primeira, fundada por Vilma Eid em 2004 e consolidada como uma das mais importantes do país voltadas a produções “não canônicas”, sejam contemporâneas ou históricas. Entre elas, o que se costuma chamar – por vezes de modo reducionista – de arte naif, popular ou vernacular, realizada em geral por artistas autodidatas, que se mantêm sub-representados no mercado. Ainda assim, o enfoque recente da galeria se mostra mais amplo que isso, incluindo também jovens artistas contemporâneos. A parceria com a Millan resulta da proximidade entre as duas casas, que já realizaram outra mostra juntas no passado. Em Leste do Éden, as galerias contam também com a colaboração da Galería Sur, de Punta del Este (Uruguai), que cedeu as obras de Figari.

Nos dois espaços paulistanos pode-se ver obras dos três artistas. “São complementares”, diz Gonçalves, explicando que não há algum tipo de divisão temática na montagem da exposição. Para o curador, de qualquer modo, percebe-se nas paisagens da Millan uma maior presença do céu, do azul, enquanto na Estação há um predomínio maior da terra e do verde da vegetação. Neste conjunto de pinturas, juntos os três artistas sonham seja com um país, como Figari, com um território rural, como Pasta, ou com um mundo perfeito, como Martins. “E talvez seja mesmo este o denominador comum entre eles: resgatar a placidez edênica associada ao sono eterno”, conclui Gonçalves.

SERVIÇO
Galeria Estação: Rua Ferreira Araújo, 625 – Pinheiros
Galeria Millan:
Fradique Coutinho, 1430 – Pinheiros
Em cartaz até 8 de junho de 2024
Visitação: segunda a sexta, das 10h às 19h; sábados, das 11h às 15h
Entrada gratuita


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