Esculturas de Dawaran Ayesha Hadhir, Rawdha Al Ketbi, Shaikha Al Ketbi na exposição "Manar Abu Dhabi". Foto: Fabio Cypriano
Esculturas de Dawaran Ayesha Hadhir, Rawdha Al Ketbi, Shaikha Al Ketbi na exposição "Manar Abu Dhabi". Foto: Fabio Cypriano

Superlativo é uma condição que parece ser rotina nos Emirados Árabes, mas a mostra de arte com luz Manar Abu Dhabi, inaugurada no fim de novembro passado, chegou a um patamar realmente além no quesito exagero.

Composta por cerca de 20 artistas, a mostra tem entre uma de suas mais impactantes iniciativas o uso de uma pequena ilha, até então desabitada, a Lulu Island. Ela foi ocupada pelo artista o mexicano-canadense Rafael Lozano-Hemmer, em um circuito de dois quilômetros que perfazem dez obras de grande escala. A mais impressionante delas é Collider, formada por centenas de holofotes robóticos de feixe de luz que podem ser vistos a partir de um raio de nada menos que cinco quilômetros.

“Não havia nada aqui, instalamos tudo”, conta a palestina Reem Fada, curadora da mostra, junto a Alia Zaal Lootah, que é dos Emirados Árabes, durante o jantar de abertura da exposição, para cerca de 500 convidados, mantendo a tradição superlativa.

Reem é responsável pela seção de Arte Pública do Departamento de Cultura e Turismo de Abu Dhabi (DCT), que possui um orçamento de US$ 35 milhões (cerca de R$ 175 milhões) e, no próximo ano, ela organiza por esta instituição a primeira Bienal de Abu Dhabi, junto com a israelense Galit Eilat, uma das responsáveis pela 31ª Bienal de São Paulo, em 2014. A poucos quilômetros dali, outro emirado, no caso Sharjah, já organiza uma bienal, que em 2023 teve sua 15ª edição.

O que impressiona em Lulu Island é a perfeição de sua ocupação: como a mostra ocorre à noite, já que as obras são em sua imensa maioria tendo a luz como constituição, há um circuito extremamente organizado, com luminárias sofisticados, banheiros com ar-condicionado e áreas de descanso.

As dez obras de Lozano-Hemmer são todas elas em grande escala. É o caso das quatro mil lâmpadas de Pulse Island, espalhadas entre arbustos e árvores, criando uma topologia a partir da pulsação que é captada de cada visitante por uma máquina. Com isso, as lâmpadas vibram a partir da batida do coração de cada pessoa que passa pela obra. “Nossa preocupação é também com sustentabilidade e essas quatro mil lâmpadas gastam a mesma energia de apenas um aspirador de pó”, conta Reem.

A interação mediada pela tecnologia é uma das principais investigações do artista mexicano e uma condição de todas as obras em Lulu Island. No caso de Collider, essa interação não se dá com humanos, mas por contadores Geiger dotados para detectar prótons e partículas alfa que chegam constantemente à Terra, como raios cósmicos criados por estrelas e buracos negros. Com isso, a cortina de luz reage às colisões criando padrões em cascata de movimento ondulatório que nunca se repetem e que tornam tangível a ligação invisível com o espaço exterior. É desses trabalhos realmente impressionantes e inesquecíveis.

Performance no céu

Hiperbólica também é a obra da companhia francesa Groupe F, especializada em participar de abertura de olimpíadas, incluindo a do Rio, em 2016, e grandes eventos semelhantes. Em Abu Dhabi ela apresenta Persistência da Forma, uma performance de 20 minutos, na qual centenas de drones desenham no céu em 3D seis dos equipamentos culturais icônicos já prontos ou em construção do bairro cultural da cidade. Entre eles estão o museu do Louvre, o Guggenheim e a Casa da Família Abraâmica, único complexo fora de Jerusalém que abriga na mesma área uma igreja católica, uma sinagoga e uma mesquita, inaugurada há poucos meses.

O espetáculo visual ocorre acima da cúpula arredondada do Louvre, projeto do arquiteto francês Jean Nouvel, e pode ser vista de distintos pontos da cidade, dada à sua dimensão, com direito a reflexo no mar. Entre cada um dos espaços culturais visualizados, os drones criam imagens abstratas. Segundo Christophe Berthoneau, CEO e diretor criativo do Groupe F, em debate realizado pouco antes da inauguração da obra, “tem sido mais recorrente o uso de drones ao invés de fogos de artifício pelo impacto ambiental ser menor”.

Apesar da tecnologia de ponta, ele afirma que ocorre com os drones problemas técnicos semelhantes aos dos fogos de artifício: “De fato é uma performance porque nunca temos garantia que tudo ocorre como o planejado, há casos em que o drone não volta mais.”

Arquipélago

Abu Dhabi é um arquipélago e, por conta disso, muitas das obras estão dispostas em ilhas. A única que precisa de barco para visita, de fato, é Lulu – o nome da dela, aliás, é uma das formas de se dizer pérola, o que era uma das atividades da região, bem antes da descoberta do petróleo, quando as famílias que se ocupavam desta economia se tornaram bilionárias.

“Essa é uma mostra feita em Abu Dhabi para Abu Dhabi, por isso usamos sua própria geografia, com as ilhas e os manguezais como espaço expositivo”, explicou Reem na abertura do evento. Os manguezais, de fato, são dos lugares mais inusitados da mostra. Eles são ocupados por três obras criadas por três artistas em conjunto: Shaikha al Ketbi, Radwha al Ketbi e Ayesha Hadhir, todas nascidas nos Emirados Árabes.

São esculturas que flutuam e possuem lâmpadas que se situam em seus contornos, como três figuras femininas que carregam instrumentos em sua cabeça, que podem representar as mulheres que lavavam roupa nos mangues.

“Ao conversar com as artistas, foram elas mesmas que escolheram esse local, que por viverem aqui, conhecem bem e decidiram usar os mangues para suas obras”, explica Alia, curadora da mostra. Para acessar esses trabalhos é preciso ir até uma embarcadouro e de lá fazer um percurso de barco de 20 minutos. Como as obras só podem ser vistas de fato após o entardecer, o melhor horário é logo após o pôr do sol, quando a vista nos manguezais é acachapante.

Corniche

Mas nem todos as obras estão instaladas em locais de acesso complexo. Ao menos metade das instalações está ao longo de Corniche, um calçadão de frente para o golfo Pérsico. Lá se encontra, por exemplo, Água, da argentina Luciana Abait, um imenso painel eletrônico que projeta uma espécie de cachoeira, fenômeno natural inexistente nos Emirados _nem rios perenes existem no país desértico.

“Sequestraram meu trabalho”, comentou ironicamente Reem, ao perceber que em frente à obra de Luciana foi montado uma área efêmera para promoção de esportes, como se a instalação fosse parte da ação de marketing. Esse é o tipo de apropriação que acaba acontecendo quando se trata de obra em espaços públicos.

No total, Corniche abriga nove trabalhos, entre eles vídeo-projeções da palestina-norte-americana Samia Halaby e uma obra interativa de Carsten Höller, alemão nascido na Bélgica.

Nascida em Jerusalém e radicada nos Estados Unidos, Samia estudou pinturas já nos anos 1950 e as duas obras expostas são pinturas cinéticas e abstratas, criadas em 1992, uma das primeiras obras em artes visuais a serem criadas com o uso de computadores. O que foi feito originalmente para uma pequena tela ganhou dimensões bem maiores para Manar, em duas telas de LED.

Já Carsten participa com Abu Dhabi Dots, uma espécie de jogo interativo na areia, onde são projetadas luzes de distintas cores e os participantes podem caminhar com essas cores e, ao encontrar com outras pessoas, pode “roubar” a cor que a está iluminando, uma proposição com a qual principalmente as crianças se divertem.

É lá de Corniche que avista ainda Memórias de um Porto, do artista dos Emirados Árabes Ahmad Saeed Al Areef Al Dhaheri, com projeções de imagens de arquivo no prédio sede da Câmara de Comércio, um dos primeiros edifícios modernos dos Emirados Árabes. Trata-se aí de uma mistura de cenas, algumas que retratam a vida modesta antes da explosão de riqueza da região com o petróleo.

Os Emirados Árabes foram criados em 1971, portanto um dos mais jovens países do globo, a partir da união de sete monarquias. Sua população de cerca de 10 milhões de habitantes tem nada menos que 80% dela composta por estrangeiros. O poder do dinheiro é visível o tempo todo – tudo parece recém-construído no país, e não por acaso é um dos novos membros do bloco econômico Brics.

A relevância da arte e da cultura neste cenário acaba sendo um diferencial, como sê em dimensões “hiperlativas”. Mas a presença feminina no comando também é um elemento que vale nota – no governo, 50% dos ministros são mulheres. “Eu sofri muito mais com a cultura patriarcal nos Estados Unidos do que aqui”, sentencia Reem, que também é vinculada ao Guggenheim Abu Dhabi, previsto para ser inaugurado em 2025.


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