Obra da série 'Exaustão da terra (2024), de Luana Vitra
Obra da série 'Exaustão da terra (2024), de Luana Vitra

Em seu texto crítico para a exposição Aos espíritos minerais, de Luana Vitra, no Museu Paranaense, a cantora Anelis Assunção lembra que, “crescida sobre o ferro que constitui o solo mineiro de sua existência”, a artista está ancorada nessa materialidade. “Desde seu bisavô mineiro e toda uma família ligada a metais e minerais anteriores a seu corpo, até a mola do tempo atual lhe empurrar para essa excursão transformadora e metalinguística, Luana traz no sangue o ferro que lhe garante a saúde e o sustento”, escreve.

No MUPA, essa jornada transformadora e metalínguística de que Anelis fala se materializa em obras como desenhos e esculturas, algumas delas inéditas, em que Luana lança mão do ferro, do cobre, do chumbo e também do barro para, numa maquinação poética, devanear acerca de uma afetividade e uma transcendentalidade dos minerais.

O convite para expor no MUPA foi feito anteriormente à 35ª Bienal de São Paulo, de que Luana participou. Inaugurada em outubro, Aos espíritos minerais fica em cartaz até março do ano que vem, na sala Lange de Morretes. Para Gabriela Bettega, diretora do Museu Paranaense, um dos maiores desafios desta individual de Luana Vitra na instituição foi “traduzir a poética singular” da artista para o espaço expositivo do museu, preservando a complexidade simbólica e a intensidade sensorial de suas obras.

“Isso se refletiu na criação de uma expografia muito específica, incluindo a construção de um espaço oval para a fruição da obra Aos espíritos minerais, que dá título à exposição, assim como na colaboração frutífera com artesãos locais para a modelagem de peças em cobre, latão e aço”, afirma a diretora, à arte!brasileiros.

Gabriela ressalta ainda que a exposição dialoga de forma insólita com o MUPA “ao reimaginar as narrativas materiais e imateriais” presentes no museu. “Enquanto os acervos arqueológicos e históricos muitas vezes são compreendidos como vestígios humanos e minerais sob um viés científico e cronológico, o trabalho de Luana Vitra nos conduz a um campo de possibilidades poéticas, onde o tempo não é linear e os materiais carregam vozes e memórias que transcendem sua função utilitária”.

Ao discorrer sobre a obra Magma, por exemplo, Luana Vitra explica que o trabalho parte de uma pesquisa que já lhe interessava no passado. A artista afirma que o ferro existente no Brasil, assim como em parte do continente africano, surgiu a partir de um evento geológico, de “uma grandíssima erupção” que aconteceu há muito tempo. “Fico pensando num caráter afetivo dessa matéria, desse centro do planeta que inflama, e eu entendo esse ferro como o afeto da Terra que transborda”, diz Luana, à arte!brasileiros.

“A exposição então passa por aspectos físicos, químicos, espirituais e afetivos das matérias. A partir disso, eu escolho os elementos que vou usar e a maneira com que eles se relacionam. Tenho pensado sobre a ascensão da matéria, numa dimensão espiritual, e as dinâmicas afetivas, que atravessam a maior parte da exposição, como no caso de Abraçadeiras, série que está ligada à afetividade dos materiais”, prossegue.

Assim como Magma, Exaustão da Terra é uma das obras inéditas levadas ao MUPA. Mas a investigação de Luana se desloca para outro mineral, o chumbo, com que ela já havia trabalhado na série Até que alguma coisa me pense para dentro (2021), com o material na forma como ele é usado na pesca. Nas novas criações, a artista usou lençóis de chumbo, chapas do metal usadas como blindagem em salas de radiologia. Ela usa o material somente uma vez em sua carreira, na individual Viver e morrer pela boca, com curadoria de Germano Dushá, feita em 2023 na Galeria Bruno Múrias, em Lisboa.

“O chumbo é um dos meus metais favoritos. É mais macio, é possível dobrá-lo ou mesmo costurá-lo como se fosse um tecido um pouco mais rígido”, explica. Depois de cortadas as chapas, Luana as costurou com fio de cobre, no que sugere ser uma alusão a uma cicatriz, ou à memória de uma fenda que “permanecerá sempre ali, em alguma medida, mesmo após uma sutura.”

Luana pondera que pensa no ferro sempre como pele, por entender que ele é a matéria mais próxima de si mesma. “A maneira como eu reflito sobre o reino mineral está sempre ligada, em alguma medida, à forma que eu entendo meu próprio corpo”, diz. “E o meu entendimento do corpo mineral ecoa naquilo que eu entendo de mim. É uma relação que se espelha. Isso vem do caminho que eu tenho na dança, anterior às artes”.

Já o cobre, afirma a artista, traz-lhe a ideia do amor, por sua condutividade. “E, pelo mesmo motivo, por ser uma ponte, ele me leva à noção das dinâmicas espirituais da matéria. O cobre também é ponte quando a gente pensa na solda. Ele facilita essas relações de transmissão”, argumenta.

Luana faz questão de ressaltar que os desenhos apresentados no MUPA são “similares imageticamente a outros” que já fez, como no caso das cerâmicas apresentadas na instalação Giro (2023), montada no ano passado na Galeria Marcenaria, no Instituto Inhotim. Desta vez, no entanto, as intervenções são feitas sobre papel, com pasta de cobre. Mas, em ambos casos, ela conta, as obras têm “dinâmicas ligadas a uma ideia ascensão da matéria”.

“No Inhotim, eu estava pensando nessa ascensão que se dá a partir da rotação, a partir de uma gestualidade química, que pode entrar num processo de elevação”, explica. “Desta vez, fiquei fabulando a equação dessa movimentação, não baseada em fatos reais. Eu penso como isso poderia se dar, no campo da imaginação, sem dar as respostas, mas ampliando as perguntas”.

TRAJETÓRIA

Luana Vitra nasceu em 1995, Contagem, cidade industrial pertencente à Região Metropolitana de Belo Horizonte (MG). Formou-se em 2018 como Bacharel em Artes Plásticas, na Escola Guignard (UEMG). Tem obras nos acervos da Pinacoteca de São Paulo e do Museu de Arte da Pampulha, em Belo Horizonte, entre outros. Em meados do ano passado, recebeu o Prêmio Pipa, o mais importante da área no Brasil. Seu currículo elenca, entre outras, uma mostra individual no Centro Cultural São Paulo (Três Guerras no Peito, 2020) e coletivas no MAM Rio (Atos de Revolta, 2022) e Sesc Belenzinho (Dos Brasis, 2023).

Luana explica que as escolhas feitas para a exposição no museu de Curitiba refletem também o desejo de fazer seu primeiro livro, que “se estende para fora da mostra, de modo A pensar outras relações do trabalho” ao longo de sua trajetória. “É como um gesto de olhar para trás, e ver um pouco tudo eu havia feito, puxar alguns pontos que ficaram meio soltos no tempo”, diz. A artista optou por não chamar um curador para conceber a exposição ou escrever o livro. Também preferiu convidar a cantora Anelis Assunção para assinar o texto crítico da mostra.

“Eu não queria que a exposição fosse pensada exatamente a partir de um olhar curatorial. Então não há curadoria, mas queria alguém que tivesse um olhar, uma maneira de imaginar a matéria junto comigo”, diz. “E a Anelis tem uma maneira de narrar que está entre a realidade e o delírio. E eu descubro, mesmo ancorada na realidade da matéria, outros caminhos que ela, a matéria, pode fazer no imaginário”. Prevista para ser lançado em fevereiro, a publicação trará também textos de Hélio Menezes e Diane Lima, que fizeram parte do quarteto curatorial da 35ª Bienal de São Paulo, da filósofa Denise Ferreira da Silva e de Valentine Umansky, curadora do Tate.

À arte!brasileiros, Valentine afirma que se sente “impressionada com a qualidade elementar dos trabalhos de Luana Vitra, que muitas vezes parecem movidos por uma força energética fundamental”. E antecipa a primeira frase de seu texto no livro a ser lançado:

Caí no trabalho da Luana Vitra como quem cai numa armadilha. Até os joelhos. De cabeça baixa. Meu pé ficou preso na rede dela, e não consegui escapar. Não a conhecia. Mas não tive como resistir. Como o ferro nas pedras, ele penetrou no meu sangue e me ensinou a enferrujar.

LUANA E O MUPA

Gabriela Bettega destaca que os desenhos e as esculturas da exposição, feitos de ferro, cobre, chumbo, latão e aço, ressoam com os objetos do acervo, mas ao mesmo tempo subvertem suas leituras convencionais. “A interação entre a obra de Luana e o acervo do MUPA não apenas provoca novas formas de enxergar o território e seus vestígios, mas também questiona como o passado é narrado e quais vozes, humanas ou minerais, são silenciadas ou amplificadas, colocando o museu como um espaço vivo de ressignificação”.

Vale lembrar que, nos últimos anos, o MUPA tem abraçado propostas que estimulam o diálogo interdisciplinar e a articulação de diferentes campos do conhecimento. Nesse sentido, Richard Romanini, Diretor Artístico do MUPA, considera que trabalho de Luana amplia essas perspectivas ao propor novas formas de pensar a relação entre passado, presente e futuro, enriquecendo as possibilidades de engajamento com o público e de abordagem das questões que moldam o território e as práticas contemporâneas da instituição.

“A exposição de Luana Vitra dialoga com o percurso traçado pelo MUPA desde 2019 ao reforçar e expandir a proposta do museu como um espaço de reflexão crítica e interdisciplinar sobre as múltiplas narrativas históricas e culturais. Seu trabalho ressoa com essa abordagem ao explorar narrativas que atravessam tempos e espaços, promovendo reflexões sobre história, território e memória”, pondera.

Romanini também ressalta que Luana convida o público a enxergar o solo como “uma entidade viva”, carregada de vozes e camadas de significados. “Esse gesto dialoga diretamente com a prática do MUPA de revisitar continuamente seu acervo e memória, ao mesmo tempo em que propõe novas formas de contar histórias e integrar saberes contemporâneos e ancestrais.”

Luana conclui que é muito interessante observar quando as pessoas olham as suas criações e não necessariamente me perguntam o que elas são. “Elas começam a fabular o que aquilo poderia ser. Minha obra fica neste limite da abstração, um campo que se abre para a pessoa refletir e destrinchar o que ela poderia ser”, diz.


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