"Ha... Ha... Ha...", 1968-2009, Gilberto Salvador. Fotos: Lucas Evangelista e Paula Campoy/ Galeria Frente

A exposição Memórias Resistentes, em cartaz na galeria Frente a partir de 16 de outubro, é quase um acerto de contas de Gilberto Salvador com as certezas ideológicas/afetivas que pulsavam à flor da pele no ano de 1968. O artista teve duas de suas obras parcialmente destruídas no Salão de Arte Contemporânea de Santos – ambas premiadas no evento pelo júri formado por, entre outros, Aracy Amaral e Fabio Magalhães, que também laurearam Antonio Henrique Amaral. Paralelamente ao episódio, sucessivas ameaças obrigaram Gilberto Salvador a se refugiar no sítio de um amigo por alguns meses. Era o momento pesado da ditadura militar que tomara o poder no Brasil com o golpe de 1964. Meses depois, de volta do exílio compulsório, ciente das novas condições artístico/ideológicas, participa da 9a Bienal de São Paulo com trabalhos diferentes, de estilo mais geométrico e voltados para o gesto. “Mostrei três grandes esculturas que hoje integram o acervo da Pinacoteca de São Paulo.”

A mostra traz as duas obras censuradas: Um, Dois, Três, alusão ao domínio americano no Brasil, e Há… Há… Há…, uma paródia sobre os Estados Unidos e a liberdade sexual dos jovens brasileiros com a descoberta da pílula anticoncepcional. Com a curadoria de Fabio Magalhães, o conjunto evidencia o desequilíbrio sociopolítico cultural da década que respingou no sistema da arte. Era o momento de transições ideológicas e comportamentais que deram voz aos jovens e os colocaram como protagonistas das principais mudanças daquela época.

gilberto salvador
“Bang”, 1969, Gilberto Salvador. Fotos: Lucas Evangelista e Paula Campoy/ Galeria Frente

A exposição abrange de 1966 a 1969 com uma reflexão que avança em dois sentidos: o momento da ditadura e a situação caótica que o Brasil enfrenta hoje. “Espero que eu tenha deixado claro qual foi a tomada de posição naquele momento e consiga fazer entender as diferenças que separam os anos 1960 dos dias de hoje.” Cada um desses trabalhos agrega vários elementos figurativos executados com uma superfície de contaminação colorista intensa. Neste cenário, Gilberto Salvador desenvolve múltiplas narrativas e seu gesto é como uma irrupção no espaço cotidiano, com o mesmo princípio reciclador que aplica na pintura.

Chama atenção a obra BANG, potencializada pela camada vermelha transparente aplicada sobre a foto, em clara alusão à truculência da Guerra do Vietnã. Como observa Fabio Magalhães, “Gilberto Salvador dinamiza a ação visual do tema e transforma a narrativa em um confronto entre a obra e o espectador. Ou seja, constrói uma linguagem que nos impulsiona para o centro da cena”. A assemblagem traz cenas retiradas dos jornais, como a foto realizada pelo jornalista Eddie Adams em 1º de fevereiro de 1968 nas ruas de Saigon. Um militar do Vietnã do Sul aponta para a cabeça de um prisioneiro e Adams clica a cena segundos antes do disparo. Essa fotografia lhe rendeu o Prêmio Pulitzer de 1969.

Vista geral da exposição. Fotos: Lucas Evangelista e Paula Campoy/ Galeria Frente

Gilberto Salvador começou na arte muito jovem. Em 1965, aos 18 anos, realizou sua primeira individual na galeria do Teatro de Arena, a convite do ator e diretor Gianfrancesco Guarnieri, com texto assinado pelo igualmente jovem compositor Jorge Mautner. Nesse momento ele estava ligado ao expressionismo, mas logo depois se engaja na Nova Figuração. “Minha ligação com uma linguagem internacional, no caso a pop arte, não era tão significativa. Eu tentava passar uma mensagem política com uma direção muito específica.”

Quatro anos depois, com posição política muito definida, ele participa da chamada Bienal do Boicote, quando é realizado um protesto internacional. No entanto, ele e muitos outros artistas brasileiros não aderem. “Me mantive com a posição do partido e com o crítico Mário Schenberg, também de esquerda e que organizou uma sala de jovens brasileiros da qual eu fiz parte. O partido dizia para nunca ter uma atitude derrotista, o importante é estar sempre presente, mesmo que seja na resistência”. Para ele, não participar daquela Bienal, no ápice da ditadura, seria aceitar a ditadura como ela é, assim eles tinham que correr o risco. “Eu estive em uma reunião em Buenos Aires e havia todo um movimento contra a Bienal e ali mesmo eu declarei que iria expor”.  Ele apresentou Ação Dialética Sobre…, que aborda o tema da Guerra do Vietnã, um grito rebelde contra as atrocidades do conflito.

“Zet 4, 5 e 6”, 1967, Gilberto Salvador. Fotos: Lucas Evangelista e Paula Campoy/ Galeria Frente

Qual o sentido de retomar esse período nos dias de hoje? Passado tanto tempo, Gilberto Salvador sente que agora é a hora de mostrar essas obras, não só por causa do tenso momento político brasileiro, mas por razões pessoais. “Estou com 74 anos e com uma síndrome pós-pólio super adiantada. Brinco com os meus filhos que a minha ampulheta virou e não vai girar novamente. Então, eu que tenho uma obrigação para com o meu trabalho e devo mostrar esse momento, que é um momento germinal de toda minha produção.”


SERVIÇO
ONDE: Galeria Frente (R. Dr. Melo Alves, 400, Cerqueira Cesar, São Paulo)
QUANDO: de 16 de outubro a 16 de novembro de 2021


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